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O que faz o sucesso do espetáculo desportivo, e em particular do futebol, é o mesmo que o torna, potencialmente, num ambiente de risco. Roubando o título de uma obra de Norbert Elias, a “busca da excitação” é a razão de ser do espetáculo desportivo. Num ambiente de excitação, sendo suspensos de modo mais ou menos generalizado os autocontrolos das emoções, emergem muitos dos preconceitos e más práticas que, noutros contextos, a vergonha social contém.
Um bom exemplo de comportamentos descontrolados reveladores de uma grosseria desbragada e de um machismo marialva insuportável foi-nos dado por Luis Rubiales, no célebre episódio do beijo a Jenni Hermoso, jogadora da seleção espanhola acabada de se sagrar campeã mundial de futebol feminino. A explosão emocional que facilitou o comportamento abusivo ajuda a explicar a emergência desse comportamento, mas não o justifica nem, muito menos, o desculpa.
Foi positiva a reação social ao abuso, a sua condenação moral radical e a exigência de demissão de Rubiales da presidência da Federação Espanhola de Futebol. Aquilo a que assistimos em direto nas televisões foi uma pulhice que não podia passar incólume. Porém, como nunca é demais repetir, nem toda a pulhice é crime. Assistimos a uma pulhice, mas não me parece que tenhamos assistido a um crime.
Quando transformamos toda a pulhice em crime, fazemos três coisas negativas. Primeiro, judicializamos a nossa vida quotidiana numa lógica radical com fronteiras difusas com o totalitarismo e as teocracias. Segundo, dispensamo-nos de reagir moralmente à pulhice, facilitando a ideia de que só é condenável o que for ilegal e, portanto, criando um ambiente anómico de amoralidade generalizada. Terceiro, eliminamos as diferenças qualitativas entre os atos praticados, perdemos o sentido das proporções, o que resulta na desvalorização dos atos mais graves: como se uma violação, por exemplo, pouco mais grave fosse do que um beijo abusivo, pois em ambos os casos estaríamos perante uma violência sexual.
Não desculpemos o que se passou. Não porque foi um crime, mas porque foi moralmente inaceitável. O que é razão suficiente, para reagir, protestar, pressionar e celebrar uma demissão que só pecou por ser tardia. Evitemos, porém, cair na armadilha da substituição da moralidade pela judicialização. O mundo da vida cívica não pode ser substituído pelo colete de forças da repressão judicial.