Pouca gente pensa nisso, mas a democracia é uma evidência recente na história milenar do Homem.
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Não muito mais de duzentos anos conturbados é nada. Até em relação a alguns actos fundadores, como a gloriosa Revolução Francesa, se discute o que é que, na realidade, implantou. Amigos da liberdade esses revolucionários nunca foram, como facilmente se constata cada vez que um "herdeiro" abre a boca. Porque democracia e liberdade não andaram, nem andam, sempre a par. Leia-se, por exemplo, o livro "Cidadãos", de Simon Schama.
Os sucessivos estados de emergência em curso por todo o Mundo, particularmente, e pela primeira vez na história da Federação, nos Estados Unidos, revelam precisamente a fragilidade "dialéctica" das democracias, por um lado. E a dificuldade em conciliar liberdades públicas com a democracia de tipo liberal, "capitalista", por outro. De repente, os "modelos" de salvaguarda da saúde pública, uma dessas liberdades, têm estado a ser exemplificados mais por regimes iliberais, ou com democracia "controlada", do que pelo "Ocidente", tão desgraçadamente mal na fotografia pandémica como se alcança do mapa europeu.
Seja pela economia, seja pelos hábitos sociais e culturais, de trabalho ou de lazer, a verdade é que seria trágico que um regresso, a prazo mais ou menos curto ou longo, àquilo que se denomina de "normalidade" representasse um retorno, que julgo inverosímil, à mesmíssima "normalidade" que nos trouxe aqui. A impotência de organizações mundiais - que possuem tanto de evangélico como de ineficaz -, tais como a ONU ou a OMS, as rápidas rotações geopolíticas estratégicas que a crise já está a desencadear ou, com incidência doméstica directa, as perplexidades financeiras no seio da União Europeia, sinalizam muitas dificuldades individuais e colectivas a chegar.
O papel do Estado vai intensificar-se, não tanto porque queira, mas apesar disso. Platão, Vico e outros dividiram por eras políticas a história. Da teocrática passava-se à aristocrática, da aristocrática à democrática, e a esta seguia-se o caos. Depois, qual pescada de rabo na boca, volta tudo ao princípio segundo a mesma ordem.
O ano de 2020, com um primeiro trimestre devastador e um segundo pelo mesmo caminho, mostra-nos um ponto de chegada nestes tão débeis quanto adolescentes anos de democracia à escala planetária. A crise de crescimento para outra coisa vai doer à brava. Preparem-se.
o autor escreve segundo a antiga ortografia