Podia dizer-se "claro como a água"? Podia, mas não era a mesma coisa! A tradução literal de "claro como o cristal" é mais impressiva e cria mesmo uma expectativa de clareza, de compreensão. E como compreender é meio caminho para acreditar, convencer e agir, tenho para mim que tudo na vida deve ser o mais cristalmente claro possível.
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Vem isto a propósito do Orçamento do Estado para 2014. Respeito definitivamente o esforço de todos os governantes e, mais ainda, de todos os funcionários da equipa das Finanças que ano após ano produzem o documento, sempre sob condições mais difíceis. Dá ideia de que tudo é cada vez mais decidido em cima da hora, com orientações e contraorientações, num frenesim que ainda por cima se junta ao que é preciso fazer para receber a troika, informar a troika, alimentar a troika.
Mas o pior é que o resultado é muito confuso e, sobretudo, muito, muito desfocado.
É claro que estamos tão habituados a estes documentos prolixos, cheios de remissões, expressões e composições que dificilmente damos pela diferença.
Mas basta ler o discurso da ministra das Finanças portuguesa e o correspondente discurso do seu homólogo irlandês para percebermos que é urgente falar claro, ganhar perspetiva, arriscar a explicação de uma estratégia.
É que do documento irlandês ressalta a fotografia de um país. Um país que está sobretudo preocupado com a sua taxa de desemprego (apesar de estar a criar três mil empregos líquidos por mês) e como tal explica quais as medidas para incentivar a criação de emprego.
Um país que tem claro que o turismo, a agroindústria, a construção são setores estratégicos que é preciso continuar a apoiar (a Irlanda baixou a taxa de IVA no setor do turismo para 9% em maio de 2011, tendo protegido o emprego existente e criado 15 mil novos postos de trabalho).
Um país que faz da atração de investimento direto estrangeiro uma das suas preocupações maiores, gerindo inflexivelmente a sua política fiscal na tripla dimensão de taxa, reputação e regime.
Diga-se a este propósito que longe do titubeante incentivo fiscal ao investimento privado (nacional ou estrangeiro) que praticamos, a Irlanda assume-se como um player determinante na luta global pela atração de investimento, participando nas mesas negociais internacionais e aperfeiçoando sem cessar o pacote global de incentivos à captação de empresas e emprego.
Um país que percebe o papel da construção e da regeneração urbana e cria/estende incentivos à recuperação/remodelação de imóveis para habitação nos centros das cidades, tornando elegíveis valores relativamente pequenos (entre cinco mil e 30 mil euros) mas desde que a contratualização se faça com empreiteiros acreditados, numa ação eficaz contra o crescimento da economia paralela.
Um país que consegue montar e fazer utilizar um esquema de apoio ao empreendedorismo fácil e razoável nos montantes e nas exigências que paulatinamente incentiva a criação de emprego. E a Irlanda não está bem classificada no ranking do empreendedorismo e autoemprego.
Um país que teve de capitalizar e tornar-se acionista da maioria dos seus grandes bancos (o que, convenhamos, é muito, muito difícil de explicar), mas que resiste a qualquer tentação controladora e mantém uma visão instrumental prática e exigente do papel dos bancos no desenvolvimento da economia.
Um país que, como nós, tem ainda uma grande dívida externa e um défice muito significativo, mas que conseguiu emergir da obsessão dos cortes e apostou desde o princípio na dinamização económica, estando por isso a negociar a sua saída do programa de ajustamento a que foi sujeito.
Esta leitura não é consequência de um trabalho aturado de acompanhamento da situação irlandesa. Apenas decorre facilmente da apresentação do seu OE para 2014.
Toda a apresentação feita pela ministra das Finanças do nosso OE para 2014 decorre de uma única ideia: estratégia de consolidação orçamental. E como esta tem de ser feita por recurso a tudo e a todos, o resultado parece-se, como dizia Álvaro de Campos a certo passo da Ode Marítima, "como o confuso conteúdo de uma gaveta despejada no chão".