No seu discurso de Ano Novo, o presidente da República alertou para os riscos que a falta de integridade política comporta para a democracia. Mas pouco disse de concreto sobre como promover essa integridade e, menos ainda, sobre a natureza perversa da relação entre justiça e política que se criou, a esse respeito, no país.
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Surpreendentemente, tem sido a política a promover a sua judicialização, transferindo para o domínio da justiça qualquer questão de responsabilidade política ou ética. Fá-lo, desde logo, ao nível do discurso, recusando qualquer juízo que não um juízo feito pelo sistema de justiça. O exemplo mais notável é a forma como a classe política portuguesa continua a não se pronunciar sobre as questões do domínio ético e político que resultam de tudo o que já é conhecido no âmbito do processo Marquês. Invoca-se a separação entre justiça e política para, de facto, eliminar a dimensão política de todo este processo. Mas fá-lo também no domínio das regras. Perante a dificuldade em investigar e punir eficazmente a corrupção, e o sentimento de impunidade dos poderosos que isso transmite aos portugueses, a política reage multiplicando a criminalização de comportamentos. Acontece que a dificuldade de definição de alguns desses comportamentos e a eventual desproporcionalidade da punição penal do que são, nalguns casos, sobretudo violações éticas, tanto permite a manipulação política de qualquer investigação como é um "convite" a que essas questões morram nos labirintos processuais e formais dos tribunais. A consequência paradoxal é permitir à política eximir-se do que deveria ser da política, sem que a justiça consiga ser eficaz no que deveria ser da justiça.
Ainda recentemente tivemos um exemplo na forma como foi tratado o lapso no preenchimento da declaração de incompatibilidades do ministro Siza Vieira. O país entreteve-se a discutir a gravidade jurídica de um erro formal do ministro, mas ignorando a sua obrigação política de explicar por que razão criou uma empresa familiar no dia anterior à tomada de posse como ministro?
Falta critério ao lidar com a responsabilidade. Falta critério ao nosso sistema de justiça e falta critério ao nosso sistema político. Sem critério não se distingue entre diferentes formas de responsabilidade (política, ética, criminal), nem entre diferentes graus de responsabilidade. E, como dizia Hannah Arendt, quando "todos são culpados, ninguém é culpado". Para Arendt, quando se generaliza a culpa impede-se a identificação de responsáveis e quanto mais genérico for o problema maior a desculpa para não fazer nada. Eis onde corremos o risco de terminar novamente.
PROFESSOR UNIVERSITÁRIO