1 - Na semana passada recebi, por correio electrónico, uma mensagem com o título "o estado a que o regime chegou". Em anexo trazia um documento supostamente redigido por um juiz que, na sequência das reduções dos ordenados dele e da mulher, resolvia passar a trabalhar menos duas horas por dia. Embora o texto aparecesse em papel com a referência ao tribunal de Alenquer e o palavreado revelasse conhecimento da burocracia do sistema de Justiça, admiti tratar-se de um daqueles panfletos que circulam na Internet. Bem feito mas forjado, tanto mais quanto a argumentação era estapafúrdia: trabalhava menos para honrar os compromissos financeiros assumidos. Para minha surpresa, constatei pelos meios de Comunicação Social que o documento era mesmo verdadeiro. Se houvesse sido redigido por um normal cidadão, dir-se-ia que revelava desequilíbrios a merecerem acompanhamento adequado. Saber que o subscritor é juiz presidente do tribunal de Alenquer arrepia.
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2. O documento ser verdadeiro foi uma surpresa. Em função das declarações a que nos habituou, não foi surpresa que o presidente da denominada associação sindical dos juízes tivesse vindo defender o juiz de Alenquer. Como se não bastasse, segundo o sítio da TVI, ainda proferiu mais esta pérola para juntar ao seu livro de memórias: «Nos momentos de crise, desde logo ética e também económica e social, os tribunais e os juízes ainda podem ser a última réstia de esperança para os cidadãos atropelados pelo estado nos seus direitos". Os que, na sequência da decisão do meritíssimo, virem os seus casos adiados são atropelados por quem?
3. Ainda a propósito de atropelamentos e atropelos, veio-me à memória o caso relatado pela SIC de um cidadão condenado, num processo controverso, a quatro anos e meio de prisão por, pretensamente, ter roubado um telemóvel. O estado é o veículo. Mas quem conduz a viatura? Atropelado por quem?
4. Um jornal divulgou escutas de conversas privadas cujo interesse se limita à mera intriga partidária. Fê-lo em clara violação da lei, com o sentido de impunidade que decorre de o acesso àquelas transcrições lhe haver sido facultado por quem tem a obrigação de zelar pelo cumprimento da lei. É urgente que se criem as condições para terminar com estas grosseiras violações dos princípios, punindo exemplarmente os prevaricadores a começar por quem fornece os dados, a troco de pagamentos ou, pior ainda, com o objectivo de pôr em causa um dos pilares-base da sociedade democrática. Não se compreende, por isso, que não tenha havido, até agora, tanto quanto se sabe, qualquer investigação rigorosa sobre estes comportamentos. Até lá, estou com o director deste jornal, José Leite Pereira: será pedir muito que os responsáveis pelos meios de Comunicação Social procurem estabelecer, em conjunto, um patamar mínimo de regras de comportamento editorial dentro das quais a concorrência se possa fazer com lisura?