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Pais mal dormidos não são pais mal-amados. Amam-nos imensamente, os bebés que não dormem: são de um fino egoísmo igual ao amor. E esperam pelo mergulho no sono mais fundo para nos atormentarem de amor, quando parece que desta vez, apenas desta vez, será possível livrarmo-nos de mais uma sessão amorosamente coreografada para nos tirar do sério.
No fundo, trata-se de uma prova de fogo: chegando à manhã sem baixas, talvez consigamos repetir a façanha na noite seguinte. O bebé certamente a repetirá, por motivos tão urgentes como o nariz entupido ou uma febre ligeira ou uma fralda por trocar ou uma tosse por tossir. Ou porque sim, que é o melhor motivo, o mais de acordo com a sua condição. O bebé chorou. O bebé chora de novo, vinte minutos depois de ter chorado. O bebé prepara-se para debitar um choro código Morse, apelando à sem-razão dos pais. SOS SOS SOS Vais lá tu, que mal dormes, ou eu, que mal durmo? Ir lá ninguém seria o melhor, e sempre alguém se levanta. Só não sei se fui eu, se foi ela. Alguém no quarto ao lado embala o bebé, cuja constipação se dissipa de tanta ternura, de tanto amor. Talvez esse alguém seja eu, talvez o meu sósia – um vulto composto inteiramente por duas olheiras. O bebé é que não repara na diferença e acalma-se.
Até hoje, eu julgava que o refúgio mais confortável era debaixo da asa de um pato. Acontece que não há melhor refúgio do que o silêncio do bebé e a cama disposta a acolher-nos. Mas adormecemos com o único intuito de sermos novamente acordados. Agora vais lá eu ou vou lá tu? Fui lá ela. Ficou na cama eu. Qualquer coisa assim, mais uma canção de embalar e o décimo terceiro choro a extinguir-se.
Quando estamos com sono, o mundo ensona-se connosco e até as crónicas, que deveriam ser sobre as coisíssimas relevantes da actualidade, acabam embaladas enquanto digo chiu, chiu, chiu.
Mas vem a manhã, que sempre chega desde que os bebés decidiram perpetuar a noite. É a nossa vingança, a manhã que chega. De noite, fomos nós os martirizados, nós que tivemos de aturar um zombie em forma de bebé. Mas de dia, Deus seja louvado, de dia é um bebé absolutamente adorável e sorridente, cheio de gu gu dá dás, que tem de aturar dois zombies em forma de pais. Afinal de contas, a vingança serve-se mal dormida.
* O autor escreve segundo a antiga ortografia