Naquela noite de novembro não fazia frio. Era a Lisboa do fadista e quase nunca faz frio. Carlos do Carmo cruzou tranquilo a porta das traseiras do imponente edifício. Afinal, quem já enfrentou tantas e tão ilustres plateias por esse Mundo fora não se assustaria propriamente com o desafio lançado pelo Jornal de Notícias. Mas o cantor não escondia a inquietação. "Estou a partir do zero", disse à entrada. Não sabia ao que vinha, o que para o caso também não interessava nada. Importante era mesmo aceitar o repto, o que Carlos do Carmo fez sem um pingo de hesitação. Convidado a participar num chat online com os leitores do JN, Carlos do Carmo não vacilou. No final, já a noite estava cerrada, classificou a experiência como "nova e surpreendente". Pela simples razão que sentiu "bastante seriedade" nas perguntas dos ciberleitores. "Falou-se de fé e das pessoas de quem gosto" e foi isso que espantou o cantor nesta nova forma de lidar com os fãs.
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Histórico do fado, é esta abertura ao que é novo que faz de Carlos do Carmo um cantor ímpar reconhecido agora pela Latin Academy of Records Arts and Sciences, que acaba de lhe atribuir um Grammy. O prémio - o primeiro a contemplar um artista português -, atribuído por unanimidade pela instituição responsável pela entrega dos tão desejados "oscars" da música, não é só o reconhecimento da qualidade única de um fadista que nunca descansou à sombra da tradição. Ao longo dos anos, Carlos do Carmo inovou. Cantou os nossos poetas maiores. E gravou com Aldina Duarte, Ana Moura, Camané, Carminho, Cristina Branco, Mafalda Arnauth ou Mariza, encorporando o novo fado. Sem complexos. Como quando aceitou gravar com Bernardo Sasseti ou Sérgio Godinho. Ou cantar no Campo Pequeno com a orquestra de Count Basie e ouvir o maestro felicitá-lo por trazer Sinatra - um dos seus ídolos - de volta... Ou conviver com Elis Regina e comer em sua casa uma inesquecível moqueca de peixe confecionada pela lendária cantora brasileira.
É tudo isto que o Grammy que Carlos do Carmo vai receber em Las Vegas no próximo mês de novembro contempla. É uma distinção à canção que nos define como nação. E é um prémio que reconhece também o cantor que muito ajudou a consolidar o fado como Património Cultural Imaterial da Humanidade. Alguém que na hora de receber a notícia emocionada do Grammy, e à pergunta de um repórter sobre o que lhe falta agora, aos 50 anos de carreira e 74 de idade, respondeu assim, sem meias palavras: "Falta ter o meu povo em bem-estar".