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Queria fazer uma crónica sobre o corrector automático mas ele não me deixa. Ameaçou greve ao meu dedilhar. Diz que me tramo, diz que me lixo, se ele entrar em greve. E mesmo que eu lhe exija serviços mínimos, berra o formiguinha: isto vai tudo abaixo sem mim.
Reunimos ontem. Foi conversa séria, de patrão para operário. Discordámos desde logo sobre quem era o patrão, quem era o operário. Na medida em que eu forneço o grosso do trabalho e ele o corrige, o corrector é patrão. Na medida em que eu o emprego, e ele apenas está na linha de montagem à cata de anomalias, o corrector é operário.
Se for meu patrão, entro eu em greve: nunca me submeti a tamanha prepotência. Ele acha que escreve melhor do que eu, corrige quando não há correcção possível - e é obsessivamente zeloso, como qualquer superior workaholic. Se for meu funcionário, atingiu todos os princípios de Peter, chegou ao máximo das suas capacidades; e agora nada a fazer. Ou o despeço sem justa causa ou o aturo.
Mas é certo: a nossa relação transbordou do profissional para o emocional. Sentimos que precisamos um do outro. Há de parte a parte um "quid pro quo", um tu não vives sem mim, tu nunca me abandonarias, que me tem transtornado. Ele preferiria corrigir para "que me tem transformado".
Talvez por causa desta intimidade ele queira dar provas de vida. Como os revisores, cujo trabalho ingrato apenas se torna notório quando falha, custa-lhe o labor invisível de formiga. E foge-lhe a correcção para o chinelo.
A culpa também é minha porque dedilho como um macaco. Ele sabe que junto letras imprevistas, ele bem vê que me falha o polegar para a asneira. Mas aproveitar as oportunidades que lhe dou é puro ressentimento, não já de operário ofendido pelo patrão, ou de patrão agastado com o operário. É ressentimento de paixão.
Por isso, quando (referindo-me às aulas que tive com a Mafalda nos Alunos de Apolo) perguntei à minha cunhada por mensagem se tinha visto "as figuras tristes que fizemos na dança" - ele corrigiu para as "figuras tristes que fizemos na cama". Por isso, quando estava atrasado e pedi a um amigo para "esperar por mim no carro" - ele corrigiu para "esperar por mim no banho". E por isso também, quando enviei um e-mail a uma fundação congratulando-me pelo protocolo que "inaugurou a nossa parceria" - ele corrigiu para o protocolo que "arruinou a nossa parceria".
E aqui estamos, reunidos de novo para resolver isto que nos une, isto que nos desune. Será o fim de um contrato de trabalho, é talvez o fim de um namoro bem-sucedido no dia-a-dia mas péssimo nas horas de ciúme. Em todo o caso, permito-lhe mexer na última frase da crónica: "dedico-te este texto como agradecimento por tudo o que fizeste por mim"; que fica, de acordo com o corrector automático: "dedico-me este terceto como padecimento por tudo o que fostes para mim".
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)
*Escritor