Quando vagueamos por terras longínquas, vemos coisas de que, porventura, nos apercebemos com menos limpidez mesmo quando são evidências e estão mais perto. Regressado a Timor (quem já cá esteve sabe que nunca se deixa Timor), comprovei novamente esta proposição empírica. Em pequenas, enormes coisas.
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Sendo a viagem longa, tive a sorte de não a calcorrear de modo solitário e macambúzio, mas acompanhado por Adelino Gomes - um dos jornalistas mais excelentes de uma geração de excelentes jornalistas, hoje tidos como veteranos ou veteraníssimos. Conversador nato e contador sereno de estórias nada serenas da sua vida jornalística, passou num ápice aquela razoável estopada de Lisboa a Amesterdão, de Amesterdão a Singapura, de Singapura a Denpasar e daí para Díli.
Já terá o leitor compreendido que não é esta a minha história. Sabia que Adelino Gomes era muito respeitado em Timor. Sabia que os timorenses não esqueciam, antes guardavam no coração, o seu testemunho enorme de 1975 quando, ao serviço da RTP e no território, foi os olhos, foi a voz de um povo que, violado pela Indonésia, tinha sido abandonado à sua sorte. Há no entanto uma diferença entre o que se "sabe" e o que se "vê". E "vi" o carinho e veneração de tantos por um homem que, aqui em Timor, ascendeu ao plano do mito. "Vi" muitos, quantos deles anónimos, outros menos, a interpela-lo na rua sem mais, só par lhe dizer "obrigado", apenas para o abraçar. Agora, sou testemunha.
Mas o momento irrepetível foi outro. Entrados num edifício com a insígnia do Sport Díli e Benfica onde supúnhamos encontrar Max Stahl, outro grande da causa timorense, fomos recebidos por um indivíduo de meia-idade, modesto no aspecto, modesto no trato. Perguntou-nos o nome e ao que vínhamos - embora me parecesse que tinha reconhecido Adelino Gomes mas não se atrevesse a acreditar. Numa exclamação, repetiu lentamente, muito lentamente, o nome do seu interlocutor. Mas o mais comovente ocorreu quando, recordando 1975 e os factos da invasão indonésia, fitou olhos nos olhos Adelino Gomes e murmurou, de uma maneira e num tom que não tenho capacidade para descrever sequer razoavelmente: "Era jovem... Agora está velho...". E, num gesto suave e com uma ternura que só o infinito conseguiria abraçar, afagou-lhe docemente a espessa barba branca. Há coisas que, de tão belas, talvez devêssemos guardar só para nós, não as falar, não as expor às imperfeições de uma descrição. Mas não seria justo. Porque ali, em segundos mágicos, se condensou uma vida.
Depois disto, e a milhares e milhares de quilómetros, a coisa que menos me apeteceria era mesmo falar das nossas desventuras europeias. A verdade é que, para nossa desgraça, isso pura e simplesmente não é possível.
A "Nave dos Loucos" é um quadro extraordinário do flamengo Hieronymus Bosch, que se crê ter sido pintado algures entre 1503 e 1504. Nessa pintura, vários personagens, extravagantes e alienados, encontram-se num barco que - é assim que o vejo - se encontra à deriva. E isto porque, estando cada um deles mais preocupado em falar consigo mesmo ou com os seus demónios íntimos, nenhum conduz a embarcação, e menos cura de a levar a bom porto. Tenho-me lembrado muito daquela obra a propósito do insensato descalabro europeu. Não é concebível que quase não passe um dia (e, certamente, nunca passe uma semana) em que mais isto ou mais aquilo confirme que estamos metidos, simbolicamente, numa Nave dos Loucos.
O último episódio, o episódio cipriota - com o confisco direto de dinheiro dos depositantes - é revelador de um crescendo desvairado que, por cortesia diplomática, apenas qualifico como perturbador. Porque viola regras mínimas de confiança e decência; porque é um comportamento próprio de regimes autoritários; porque aqueles que querem "sossegar" os seus próprios cidadãos (debalde o tentam) têm o desplante de ter imposto essa medida aos cidadãos de outro povo da União Europeia, como se nada fora. Quem, doravante, acreditará? Como é possível destruir em tão pouco tempo aquilo que tanto tempo demorou a construir? Sempre gostei da pintura genial de Bosch. Tinha como certo que descrevia um passado estranho e imaginário. Estava enganado.