Quando há dias Barack Obama e Raúl Castro, cada um no seu país, decidiram falar em simultâneo, não podiam ignorar que iam mesmo fazer história. De facto, o restabelecimento das relações diplomáticas entre os Estados Unidos e Cuba é uma notícia de primeira grandeza, a forma do anúncio foi espetacular; e as medidas acordadas entre ambos não são menos espetaculares.
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Cuba tem a sorte e tem o azar de estar perto dos Estados Unidos.
Teve sorte quando acedeu à independência, quase a chegar o século XX, porque os Estados Unidos queriam despachar o colonizador espanhol. E, pragmáticos que são, se não ia a bem, teria que ir a mal: e assim fizeram. Inventaram que os espanhóis tinham sabotado um dos seus couraçados (o USS Maine), na altura atracado em Havana, e esse foi o pretexto para a guerra, que veio a resultar no nascimento (sofrido) de Cuba.
A Cuba nunca faltaram episódios de instabilidade política, de golpes e contragolpes. O seu vizinho do Norte deve ter ficado um pouco mais tranquilo a partir de 1933, quando ascendeu ao poder um oficialzeco, Fulgencio Batista de seu nome, que ali ficou a mandar até 1944, a certa altura já como presidente. Mais tarde, e porque o nosso homem devia gostar de golpes militares (ou, porventura gostava mas é do poder), lá voltou como ditador ao poder em 1952, de onde só saiu à bruta, às mãos de Fidel, Che Gevara e etc. e tal.
Fulgencio, um patife, capacho dos Estados Unidos e corrupto até às orelhas ou para lá das orelhas, encontrou exílio em sítios onde se terá sentido menos deslocado. Sim, ao menos isso, devem ter-lhe sabido bem as estadas na Madeira e no Estoril (acolhido pelo "nosso" António de Oliveira) e, mais tarde, em Marbella (agora, como hóspede de Francisco, o Generalíssimo).
Subiu Fidel ao poder em 1959, há tanto tempo que parecem séculos, num Mundo dramaticamente diferente do de hoje. Mas em todo esse tempo, houve uma coisa que se manteve imperturbavelmente inalterada até esta semana: a obsessão dos Estados Unidos com Cuba, a obsessão de Cuba com os Estados Unidos.
Durante mais de 50 anos (tendo o passo decisivo sido dado por Kennedy), Cuba esteve sujeita a um embargo económico como nunca conheceu a história. No início, aliás, até foi pior do que um embargo. Aterrados com a hipótese de um comunista em Cuba, amigo da União Soviética e ainda por cima barbudo e atrevido e com discursos infindáveis, os Estados Unidos fizeram tudo para o derrubar, quase sempre de forma trapalhona. Tentaram a invasão na Baía dos Porcos, um fiasco miserável. Tentaram matar uma série de vezes o líder cubano, e lá continua ele, velhote é certo.
Agora, o seu irmão Raúl e Barack Obama dizem "já chega", porque realmente já há muito que nada nesta hostilidade (de que muitos fizeram profissão lucrativa) fazia sentido, mas era necessário que alguém tivesse a coragem de o afirmar publicamente. Nos Estados Unidos, foi um terramoto político, e parte dos congressistas, em fúria, declarou que fará tudo para que este reatar de relações não chegue a bom porto. Prometem, por exemplo, que nunca aceitarão que seja nomeado um embaixador em Havana.
Creio que vão tarde, Obama marcou o terreno de jogo. E deve andar a tomar alguma coisa boa - não sei se existe Viagra político - porque, nos últimos meses (a questão da tortura; o acordo ambiental com a China; a solução da imigração ilegal) têm sido passos certos sucessivos.
Mas, falta falar no ator principal: o Papa Francisco.
Aquele que nunca apareceu nem quis a ribalta, mas que foi nomeado, tanto por Raúl Castro como por Barack Obama (os dois agradecidos) nos seus discursos de paz. Este Papa, que não para de surpreender em tantas coisas, consegue surpreender mais uma vez, tendo sido fundamental no processo de aproximação entre EUA e Cuba. A Igreja Católica já tem mais de 2000 anos, já viu tudo, já passou por quase tudo. Mas, mesmo assim, é absolutamente excecional que ninguém tenha sabido de nada e que a diplomacia tenha sabido sê-lo (discreta), numa questão de importância política tão enorme como esta.
Jesus Cristo é mediador entre Deus e os Homens, diz a Bíblia (Tm, 2, 5) e recorda-o Pio XII na sua encíclica Mediator Dei, de 1947. O Papa Francisco revela-se agora, também, mediador entre os Homens. Vendo o resultado, Deus de certeza deu um empurrãozinho.