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Em maio de 2023, escrevi uma crónica intitulada "desumanização", centrada no abandono de 12 migrantes, incluindo um bebé de seis meses, lançados pelas autoridades gregas numa jangada no meio do mar Egeu. Nessa altura ainda não tínhamos mudado o contexto político e a imigração não se tinha tornado o cavalo de batalha que é hoje, nem o horror na Faixa de Gaza tinha obrigado a colocar camadas de novos significados sobre a palavra desumanização.
Temos vindo a assistir a uma simplificação facciosa de temas complexos, travestindo com factos posições ideológicas de partida. O que faz com que, salvaguardadas as devidas proporções e distâncias que separam os temas, tanto Gaza como as migrações se tornem motivo de polarização, como se quem está de um lado não conseguisse reconhecer que o sofrimento e o rosto concreto de cada ser humano deveriam estar acima de análises políticas.
No espírito da 53ª Semana Nacional das Migrações, que decorre em Fátima, a diretora da Obra Católica Portuguesa de Migrações alertou para os riscos de narrativas alimentadas de preconceito e convidou a olhar os imigrantes como pessoas, cada uma com um nome, uma história e um percurso. Raul Manarte, psicólogo português a trabalhar em Gaza para os Médicos sem Fronteiras, declara à TSF o quanto a humanidade se torna simples de reconhecer quando se está no terreno: "É muito fácil ser neutro, porque à minha frente eu tenho um ser humano e a nacionalidade é irrelevante. Para quem está em Portugal, a ver à distância, é mais difícil".
Todos na vida temos preconceitos, valores, perspetivas a partir das quais lemos o mundo. É normal que procuremos dados que confirmem as nossas ideias, imagens que suportem os nossos argumentos, publicações que confortem o nosso ponto de vista. O que não é normal é aceitarmos o silenciamento de quem dá voz e corpo aos conflitos, como aconteceu com o jornalista Anas Al-Sharif e companheiros. E sobretudo deixarmos de reconhecer o horror quando ele nos entra pelos olhos, procurando justificações sucessivas para o que deveria ser injustificável.