Da intolerância na Europa
A tolerância é uma palavra que comporta significados diversos e paixões irreconciliáveis. Em Portugal, no princípio do século XX, a palavra "toleradas" era o eufemismo usado para "prostitutas" nos regulamentos policiais que disciplinavam os aspetos com relevância económica, sanitária e administrativa dessa peculiar modalidade de comércio.
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É flagrante o intuito de distanciação cultural e a pretensão de neutralização ética veiculados pela semântica da "tolerância" ali conjugada no particípio passado. Em contraste, o particípio presente é por regra virtuoso criando uma curiosa assimetria entre o agente da ação e o seu objeto, mas por aqui se explicam os afetos dissonantes que a palavra suscita.
Passando do plano da polícia para a filosofia e a política, a tolerância emerge como condição da liberdade, na medida em que impõe a todos aquele mínimo de cooperação indispensável à proteção da autonomia de cada um - a abstenção de interferir ou até de ajuizar - operando uma requalificação da condescendência em virtude. Como garantia de respeito ou pelo menos de convivência pacífica entre seguidores de crenças e religiões rivais, as guerras civis na Inglaterra do século XVII e na França do século XVIII, iriam fazer da tolerância um valor superior da nova ordem social. Contudo a universalidade da tolerância tem apenas um valor retórico. Logo que foi inventada, por John Locke, já excluía os "papistas" - palavra que designava os católicos romanos na Inglaterra do século XVII - e com Saint-Just, a Revolução Francesa iria dela excluir "os inimigos da liberdade". Nem admira que o atual Papa resignatário se tenha ocupado também da denúncia daquilo a que chamou a "ditadura da tolerância".
No final de fevereiro, o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra promoveu em Lisboa a conferência final do projeto europeu TOLERACE (Semânticas da tolerância e (anti) racismo na Europa), em que tive a oportunidade de participar, por amável convite do seu coordenador, o prof. Boaventura de Sousa Santos. Destacamos das recomendações finais a necessidade de desentranhar o racismo dos problemas da imigração porque é este o contexto em que ele atualmente se reconfigura, construindo as "diferenças culturais" como razão do insucesso das "políticas de integração das minorias", excluindo de avaliação crítica as "diferenças culturais" da maioria, encobertas por um conceito de "pertença política" que se transmite candidamente às estruturas e relações de poder, desde a conceção das políticas pelos académicos e legisladores até ao "funcionamento quotidiano das instituições democráticas".
A história europeia, desde o fim do Império Romano até à Revolução Francesa, no século XVIII, lidou com o problema permanente, no plano interno, do ódio religioso e das perseguições aos hereges e, no plano externo, da guerra contra o islão. A partir do século XIX, a construção romântica dos nacionalismos iria desenhar o novo mapa político europeu e inscrever como marca identitária dos estados "nacionais" recém-formados todo o capital simbólico dos triunfos alcançados e das humilhações sofridas.
É nesta "pertença política" largamente efabulada que se funda um conceito de "cidadão nacional" que permanece refém das mitologias nacionais e que sobrepõe os laços de sangue e arcaicas solidariedades tribais, ao critério físico, territorial, do "lugar do nascimento" para reconhecer um direito de aquisição da nacionalidade. Perante a falta de vontade dos estados de mudar as leis que regulam a aquisição da nacionalidade, a imigração, o direito de asilo e a concessão do estatuto de refugiado, por que não propor a invenção de uma cidadania europeia que incluísse, segundo critérios a acertar, os imigrantes e descendentes que permanecem excluídos de qualquer cidadania ou condenados a um estatuto de cidadania diminuída - o mais íntimo reduto onde enquistaram os preconceitos de que se alimenta a exclusão e a intolerância?