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É científico, pode já dizer-se. A maior parte dos portugueses passa mais tempo a comentar os resultados eleitorais do que a levantar-se do sofá para votar. Talvez porque comentar resultados seja uma prática diária, no sofá ou vizinhança, nas redes do livro das caras ou nas redes do face a face, talvez porque o comentário tenha o nome assinado a "bold" e o voto seja algo secreto, logo, uma espécie de sociedades para crentes no exercício do anonimato, sem interesse algum ou visibilidade "swag" para os abstencionistas. Não tardará um populista qualquer que proponha a assinatura pessoal nos votos e a sua exposição em praça pública (uns anos antes, claro, de suspender as eleições como medida temporária - tão na moda - após chegar ao poder).
O combate ao abstencionismo passa pela consciência, pelo populismo ou pela obrigatoriedade. Ou então pela tecnologia. Confesso que prefiro esta última, já descrente da primeira. A abstenção ganhou as eleições europeias em Portugal com 6,4 milhões de portugueses inscritos que não foram votar. Só que a abstenção não ganha rigorosamente nada, pelo contrário, só permite que outros ganhem com ela. E assim foi, com uns a reclamarem que outros não tiveram uma vitória clara e outros a não sentirem que a derrota de uns foi suficiente para cantarem vitória. Excelentes motivos para comentário e opinião nas redes preferidas dos abstencionistas. É vê-los felizes agora, cheios de razão e júbilo, arredondados no argumento do "são todos iguais" e do "já dei para esse peditório". Neste particular, somos bem europeus: é ver-nos a sofrer, quase todos, ao virar da esquina, parecendo que não quisemos saber.
A dada altura da noite foi inevitável desviar o atenção para a minha freguesia, para a minha urna. Depois dos primeiros resultados se anunciarem, depois do confronto com mais uma peste irredutível de indiferença perante as decisões, depois da triste realidade portuguesa, depois do susto europeu, depois de mais um passo para esfumar o sonho da Europa inclusiva e de respeito pela liberdade, deixei os resultados macro de lado. Emocionalmente, eu já estava nos resultados da urna onde havia votado numa sala semivazia durante a tarde. Os resultados da freguesia eram fundamentais mas, perto do fim da noite, percebi que não fugiam aos resultados do concelho e do país. Restava-me que a minha urna, essa irmandade de votos secretos e íntimos, revelasse uma pequena aldeia de irredutíveis gaienses (porque gaulesa, já só com Frente Nacional...) a comunicar como um condomínio de afectos, sem palavras, sem combinações. Uma farsa, evidentemente. Um golpe duro à espera do "click", uma teatralização da realidade, uma comédia romântica pobretanas, quase trágica. Ontem de manhã passei por lá, pelo local de voto nos bombeiros voluntários e somei sorrisos amarelos à freguesia que vota na minha freguesia: 33,62% de votantes, a média mais baixa do concelho, abaixo da média nacional. Número 17, a minha urna: 287 votos, seguindo quase na perfeição o alinhamento dos resultados nacionais, com a excepção de Marinho e Pinto, à frente da aliança PSD/PP, como vice-rei da noite. Outro sorriso, contido. Nenhum sorriso verdadeiramente bom.
Afreguesia que frequenta a minha freguesia é estranha: prima pela semelhança. Um belo presente, este, da minha freguesia para a Europa, completamente alinhada com o país. Com um PS a simular que a sua vitória não é pífia como o salário mínimo que sempre defendeu e com resultados inferiores aos que obteve nas autárquicas, com o PSD aliviado pela curta margem de diferença mas sem saber quanto valeria sozinho e se há esperança no futuro próximo para os seus "boys", com o CDS sem saber quanto vale ou se existe, com a CDU a testar (bem) a resistência mas sem mostrar ser capaz de dar o salto que a leve a poder verdadeiramente, com o BE a repetir - na prática - a percentagem das legislativas mas a abanar com tanto trambolhão sucessivo. Com Marinho e Pinto, a fazer testes de sangue em fase laboratório para outros voos. Com o Livre a dividir, fruto da divisão, mas a arrancar para o nada. Com a Europa a virar à extrema-direita e com o pequeno exemplo do Siryza grego a par com o crescimento do Partido da Esquerda Europeia. Está mesmo ali ao virar da esquina. Fresquinha e recomposta por novos votos. A minha freguesia, a minha Europa. Era uma vez.