Corpo do artigo
O quotidiano está cheio de nomes de mortos, de listas de carinhos e aversões. São relicários íntimos - verdadeiras preces que dispensam jaculatórias.
Eu chorar por uma professora que morreu é coisa pouca. Todos os anos regressam as aulas e regressa ela: sorridente no meio de nós os miúdos. Chamava-se Fernanda César, foi uma das quatro genuínas professoras que tive no secundário, e tentou ensinar-me alemão. Mas achtung: a Fernanda ensinou-me muito mais.
No meu relicário ela ainda sorri. Tinha o sorriso inteiro, como se nada escapasse à boca, aos dentes e ao entendimento. Como se a vida fosse escrita por ela numa única frase límpida e sem emendas.
Tínhamos quinze anos, e por vezes a Fernanda César ameaçava-nos, mas a ameaça era aparentada de abraço. Tinha fúrias carinhosas porque não havia maneira de nos obrigar a engolir uma língua indigesta como o alemão. Nesse sentido, parecia-se com os amantes de iguarias das quais só se gosta depois de um ritual de iniciação forçado. A ameaça era sempre ensino.
A mim não me ensinou ela alemão. Bitte, Frau, Actung - umas palavras foram ficando, mas perdidas face ao que verdadeiramente a Fernanda me ensinou. Hoje compreendo que me ensinou a forma mais exigente de alegria.
Tenho aversão às declarações que podiam ser partilhadas nas redes sociais. São frases só com palavras. Mas Fernanda César, a Frau, de facto mostrou-me a alegria perante a tristeza da morte, e essa podia ser a definição do dicionário para felicidade.
Não sei por que motivo só começou a faltar às aulas quando a doença já a tinha agarrado com aquela mão firme e detestável. Custa-me que tivesse sido para nos ensinar a vida - a Fernanda merecia mais descanso da nossa parte. Mas sei que no-la ensinou, até quando nos dava alemão. Era encantadora e sábia. Quem o é em conjunto? Vou conhecendo poucas pessoas com as duas qualidades.
Além disso nunca vacilou. Sabendo que estava muito doente, guardou a alegria, manteve a sabedoria e seguiu suave. E nós vimos nela o quase tudo que nos faltava.
Um dia, antes de entrar de baixa, deu-me “O conto de Inverno”, de Shakespeare, em português. Na dedicatória escreveu: “espero que um dia sejas capaz de apreciar esta beleza na sua versão original.” Prometi-lhe que no futuro conseguiria.
Hoje, já consigo ler no original: mas nunca o fiz. Se tiver uma promessa por cumprir, a Fernanda terá sempre uma aula para dar. E assim, a cada Setembro, eu posso regressar a ela com os trabalhos de casa por fazer.
*O autor escrevesegundo a antiga ortografia