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Cavaco Silva ontem tomou uma decisão. Exonerou dois consultores, que até poderíamos chamar de compagnons de route, da Presidência da República. Porquê? Por terem assinado o chamado manifesto dos 70. O documento, convém lembrar, foi revelado publicamente anteontem, mas só um dia depois, quando o "Expresso" associou os nomes de dois dos subscritores - Sevinate Pinto e Vítor Martins - ao inquilino de Belém, é que os seus lugares foram colocados em causa. Este é, no entanto, apenas um detalhe. Recordemos o essencial: setenta personalidades de peso de todos os quadrantes da política nacional (PSD e CDS incluídos) assinaram, a dois meses do final do programa de resgate da troika, o manifesto no qual apelam à reestruturação da dívida nacional. São sindicalistas, patrões, académicos, políticos e muitos ex-governantes. E há, já se sabe, dois assessores seniores de Cavaco. Todos, a uma só voz, lembram que os valores da dívida pública (130% do produto interno bruto) são "insustentáveis".
No léxico de São Bento, "reestruturar" é uma palavra que, por estes dias, faz soar alarmes. Na Europa também, ainda que por razões diferentes. O mesmo acontece em Belém. Enquanto Pedro Passos Coelho acusou de "irrealismo" os notáveis que rubricaram o apelo à reestruturação, por porem em causa o financiamento do país, a Comissão Europeia limitou-se a afirmar que essa eventualidade está "fora dos planos". No Palácio de Belém exoneram-se os assessores que pensam diferente de Cavaco. Mesmo antes de o presidente comentar o teor do manifesto. Cavaco não fala da mensagem, opta por matar o mensageiro. No caso, eram dois.
Ao fazê-lo, como bem lembrou ontem Francisco Louçã ao microfone da TSF, Cavaco Silva usou "dois pesos e duas medidas". O ex-dirigente do Bloco de Esquerda, que também assinou o manifesto da polémica, recordou Carlos Blanco de Morais. Ele ascendeu à Casa Civil da Presidência da República, tendo sido um dos redatores da moção estratégica que Pedro Passos Coelho apresentou ao congresso do PSD e que haveria de o eleger em substituição de Manuela Ferreira Leite, que também rubricou o manifesto.
O caso Blanco de Morais não foi o único. Louçã recordou ainda os de Moreira da Silva e Suzana Toscano que, apesar de assessorarem Belém, nunca se abstraíram de criticar o Governo de José Sócrates, sem que Cavaco tenha mexido uma palha. Há razões partidárias - mais do que racionalismo macroeconómico - para a atitude de Cavaco? Há quem diga que sim. E há quem diga que não. É que, apesar do manifesto falar apenas e só em reestruturação da dívida, os detratores da medida temem que os mercados internacionais possam ler na proposta algo próximo de "perdão".
Podemos, no entanto, achar que uma reestruturação neste momento seria uma forma de adiar o pagamento do que devemos já hoje, transferindo essa responsabilidade para gerações futuras. Hipotecando-as. O futuro dirá quem tinha razão.