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1. Aos dias pares, o acordo para um Governo de Esquerda parece distante. Aos dias ímpares, só falta assinar. Aos dias pares, não se entendem sobre o salário mínimo, a devolução da sobretaxa do IRS ou a redução do IVA na eletricidade. Aos dias ímpares, há entendimento sobre a devolução de salários aos funcionários públicos, descongelamento das pensões e redução do IVA na restauração. Resumindo, são negociações lentas, difíceis, com avanços e recuos (sobretudo com o PCP). Não parece caso para desesperar (à Esquerda), nem para celebrar (à Direita). É sinal de que, quando (e se) houver acordo, será sólido, credível e duradouro. É sinal de que estão a ser discutidas políticas e não os lugares que cabem a cada parceiro no saque habitual aos tachos e recursos do Estado. É verdade, no entanto, que o país político não estava habituado a isto. As negociações entre PSD e CDS são sempre menos tensas e mais sorridentes. Talvez porque a prioridade negocial não sejam as políticas, antes a fatia de poder que cabe a cada um. Suspeita sobretudo válida no caso do CDS, o partido que já foi tão ou mais eurocético e soberanista que o PCP e faz hoje juras de amor eterno ao euro, ao tratado orçamental e a Angela Merkel; o partido dos pensionistas e dos contribuintes, que vendeu à troika à primeira oportunidade, a troco de um prato de lentilhas.
2. A retórica de Esquerda é tão má quanto a de Direita. Exemplo: há um ano, Pedro Filipe Soares, líder parlamentar do BE, reagia ao aumento do salário mínimo para 505 euros, denunciando a "demagogia" da Direita: "Não vale mais do que um café por dia". De acordo com o (pouco) que se vai sabendo sobre o acordo da Esquerda, estará em cima da mesa um aumento do salário mínimo, no próximo ano, para 522 euros. É muito? É pouco? Usando a medida do deputado bloquista, vale menos do que um café por dia (57 cêntimos). Sendo que não será caso único de ganhos pouco mais que miseráveis. Se vingar a fórmula de descongelamento das pensões que estava em vigor antes da troika, a atualização só chegará a quem receba até 628 euros e será de 0,3%, ou seja, no melhor cenário, seis cêntimos por dia. Ou seja, um café por cada dez dias de pensão. Finalmente, se os trabalhadores que ganham menos de 600 euros beneficiarem de um alívio de 1,3 pontos percentuais na Taxa Social Única (uma vez que a devolução da sobretaxa de IRS não os aquece nem arrefece), a melhoria será, no melhor cenário, de 26 cêntimos por dia, ou seja, três dias de trabalho para pagar um café. Parece poucochinho, não parece? Talvez isso explique as cautelas do PCP.