Estão as citações, na escrita de crónicas, ao nível da prosápia na oratória política. Dão sainete, independentemente de acrescentarem zero. E nada nos impede de juntar as duas, citando um político brasileiro de que alguns se lembrarão, Odorico Paraguaçu: “Esta obra entrará para os anais e menstruais de Sucupira e do país”.
Além de ser brasileiro numa cidade imaginária, Sucupira, Odorico não existe fora do mundo da ficção, embora a fronteira entre o factual e o faz de conta seja reiteradamente diáfana, ou mesmo porosa. Não sabemos o que de real há na atualidade que observamos e da qual damos testemunho. Demasiadas vezes sentimos que estamos do outro lado do espelho, tal a capacidade que temos, enquanto sociedade, de criar factos, cenários, medos tão fundados como a perceção de que a meia-noite é a melhor hora para capturar gambozinos. E quando a engrenagem delusória funciona com precisão merece aplauso. Assim é com o espetro de crise política em torno da viabilização do Orçamento do Estado para 2025, que já conquistou lugar nos “anais e menstruais” da política portuguesa.
A inquietação das últimas semanas é o arquétipo do não assunto, o epítome de uma realidade fantasiosa que convém a muitos: aos políticos que marcam território, uns perante os outros, todos perante o eleitorado; aos jornalistas especializados em rotinas de ação-reação (fulano disse que tal e coisa, quer reagir?); aos comentadores, lustres especulativos da sociedade da informação pronta a comer; aos altos responsáveis lançando achas para a fogueira. E a etapa seguinte, do pós-negociação, leva cada protagonista a apresentar as suas grandes conquistas e a usar esse verbo de encher que é a expressão “sentido de Estado”. Ou a espernear, no caso de algum figurante de ópera bufa insistir em dizer-se atraiçoado.
Isso tudo é política, enquanto jogo estratégico. E a outra política, que joga com as vidas das pessoas? Que trará o orçamento? Travará o amesquinhamento da classe média? Reparará injustiças? Restituirá dignidade? E o que é um orçamento? Para os políticos não é, certamente, o mesmo que para a senhora dizendo, num espaço público, que já nem pode dar-se ao luxo de comprar um pacote de bolachas: “Às vezes, se ando desconsolada, vou ao açucareiro e meto uma colher à boca”.
*Jornalista

