Sou do tempo do serviço militar obrigatório. Mal acabei o curso, fui para Mafra, onde me escolheram para fazer uma estranha especialidade, Anticarro e Morteiro Médio, de que nunca ouvira falar antes de chegar ao Calhau. O meu pai não sabia guiar. Eu aprendi na tropa a destruir carros (de combate) e tirei a carta tarde, mas juro-vos que não é por isso que acho urgente retomar a guerra ao automóvel declarada pela Porto 2001 e posta entre parêntesis durante a dúzia de anos do consulado de Rui Rio.
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No último quartel do século XX, espartilhada em concelhos que competiam entre si (nos últimos 40 anos, 80% dos edifícios foram construídos nos arredores), a área metropolitana do Porto cresceu como uma mancha de óleo, de uma forma caótica, difusa e horizontal, dando origem a uma enorme extensão urbana, com baixa densidade populacional.
Este modelo de desenvolvimento, tipo cidade jardim, cria uma enorme dependência do automóvel, com todo o seu cortejo de consequências negativas: poluição, trânsito caótico, horas perdidas em engarrafamentos, isto para já não falar no preço da gasolina que não tem parado de subir.
A ideia de cidade acolhedora e boa para se viver, chocada no âmbito da Porto 2001, passava por um retorno à Baixa que se estruturava na criação de desconforto ao uso do automóvel e no investimento numa rede eficiente e não poluente de transportes públicos.
O poder do automóvel, que não parou de aumentar ao longo do século, começou a ser afrontado em 2001. Em muitas ruas do centro, os passeios aumentaram à custa do espaço dos automóveis, confinados a uma faixa de rodagem por sentido - um ovo de Colombo, pois mesmo com duas faixas só se circula numa, pois há sempre carros parados em segunda fila.
Parte do espaço roubado aos automóveis passou a ser partilhado por peões com os elétricos, que ressurgiram na Baixa, e tudo parecia sorrir até que Rio pôs em banho-maria a ideia de cidade da Porto 2001 e não só descontinuou o programa de mobilidade, como inclusivamente o sabotou, mandando arrancar trilhos na Boavista e Foz, onde estava previsto voltarem a circular os elétricos, como parte integrante da rede de transportes públicos e não na caricatura atual de adereço decorativo para turista ver e usar.
Os ventos sopram de feição a que o Porto volte aos trilhos e pare de descarrilar. A crise teve o efeito secundário positivo de colocar um ponto final a um ciclo de décadas marcado pela especulação urbana e a lógica do betão. E Rui Moreira já se comprometeu em aumentar a área pedonal da Baixa.
Hoje, além de ser o dia das mentiras, é também o do aniversário da inauguração da primeira carreira de autocarros (Aliados-Carvalhido), em 1958, que marcou o início do trágico declínio dos elétricos, que tinham 38 linhas e percorriam 150 km. Neste dia, quero acreditar que o presidente da Câmara vai tirar da gaveta o plano de mobilidade e que os elétricos, não poluentes e a circular em corredor próprio, serão um complemento eficaz do metro na guerra ao automóvel. Velejador, Rui Moreira sabe muito bem que não há ventos favoráveis para quem não sabe a que porto quer chegar.