Estivéssemos nos "idos" da década de setenta e oitenta próximas passadas, o presidente deveria chamar o primeiro-ministro e demiti-lo.
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Nessa altura, até 1982, o PR podia demitir livremente o PM e não precisava de recorrer ao mecanismo da dissolução parlamentar. Depois, voltava a convidá-lo a formar novo governo, ou a indicar outra personalidade para o efeito, uma vez que detém maioria absoluta parlamentar. O que o PR deixaria claro é que não aceitava um governo trapalhão e remendão, recheado de tartufos nulos, sem perfil, ou de perfil nunca à altura da presença num governo da República. O PM indigitado teria de formar governo do zero, sem os mesmos zeros à sua esquerda e à sua direita partidária. O "regular funcionamento das instituições democráticas" não é aferido a partir das secções mais activas do PS. Nem tão-pouco pela vocação "carnívora" e atomista do PR que asneirou ao dissolver precipitadamente o Parlamento por causa de um orçamento, declinando em "detritívoro". Agora, e bem, para variar, o presidente já afirmou que nem pensar em dissolver o Parlamento. Pudera. Até um miúdo esperto, do Ensino Básico, chegaria a idêntica conclusão. António Costa parece andar sempre ao cartão e no lixo onde, dia sim, dia não, tem de ir esgaravatar para tirar de lá o pior do que não presta. Mas é preciso deixá-lo esgaravatar até às profundezas porque foi essa a mensagem do eleitorado, fará neste final de mês precisamente um ano. Temos de dar ao "povo" o que o "povo " quis, e, se calhar, merece. O presidente concede-lhe um ano retórico para ver se muda de vida. Mas o presidente diz tanta coisa que não vale a pena levá-lo à letra. Parafraseando Carlos Blanco de Morais (vide "O sistema político no contexto da erosão da democracia representativa", Almedina, 2017), Marcelo dispunha de um gládio que utilizou sem êxito. De "carnívoro" passou a "detritívoro", isto é, a um presidente "necrófago", "que evita confrontos directos privilegiando os indirectos". E "que segue uma sinuosa navegação entre as brumas inter-institucionais" graças às relações privilegiadas com certos órgãos de comunicação, tão seus porta-vozes informais quanto papagaios repetidores. O perfil "caudilhista" do primeiro-ministro já conheceu melhores dias. Pelo que a mistura de Costa com o actual "detritívoro" presidente vai ser engraçada de seguir. Como nem um nem outro constituem potências "nucleares" fortes, como Soares e Cavaco, não deverá criar-se qualquer "equilíbrio pelo terror", salvo a alegre continuação da amoralidade política vigente. As coisas decompor-se-ão naturalmente a bem do país.
*Jurista
O autor escreve segundo a antiga ortografia