Défice de soberania europeia
Só com muito sentido de humor é possível tentar explicar e demonstrar a coerência das posições suscitadas pela querela sobre o orçamento da União Europeia, desde logo, a discrepância entre a posição do Governo de Portugal, grande defensor das políticas de austeridade e contenção orçamental, no plano doméstico, e a oposição frontal ruidosamente anunciada aos cortes propostos no orçamento da União.
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O receio da limitação dos fundos estruturais é, como se sabe, a principal preocupação do Governo português mas - como descrevia o "Guardian" de quinta-feira, na edição online (Nicholas Watt e Ian Traynor) - também a França, a Polónia e a Espanha temem os cortes na política agrícola comum de que são os principais beneficiários. Também a Alemanha, principal contribuinte líquido da União, quer evitar restrições orçamentais que prejudiquem os programas de modernização das infraestruturas de energia e transportes necessários ao relançamento do mercado doméstico da energia com que contam para compensar o prometido abandono da energia nuclear. Também David Cameron, por seu turno, avança de emergência para Bruxelas para reclamar a todo o custo a manutenção das deduções consentidas à contribuição financeira do Reino Unido - privilégio outrora conquistado por Margaret Thatcher, como faz questão de sublinhar - mas que, já na opinião dos franceses, permitem que a contribuição líquida dos ingleses para o orçamento europeu fique muito aquém das respetivas posses, ao contrário do que sucede com a França que, aliás, suportaria uma quarta parte desse "benefício" britânico...
É fácil de prever que, constrangido pelas políticas de austeridade doméstica em vigor, o orçamento comum venha a sacrificar os planos de promoção do crescimento económico que tanto almejava e de que a Europa efetivamente carecia, ao menor denominador comum de conveniências contraditórias e de mesquinhas rivalidades nacionais. Por isso, é manifesta a insuficiência dos projetos de união orçamental ou da união bancária de que agora, finalmente, se começou a falar. Contudo, aquilo de que a Europa precisa, incontornavelmente, é de uma união fiscal.
Aprincipal ameaça que a União Europeia hoje enfrenta é o renascimento dos nacionalismos e o recrudescimento dos egoísmos nacionais que a impedem de traçar um rumo certo e construir a confiança indispensável para superar as insuficiências do processo de integração política que o alargamento aos países de Leste tornou mais premente mas que o Tratado de Lisboa todavia não resolveu. É por isso muito grave o ressurgimento de velhos preconceitos xenófobos e a quebra da solidariedade europeia que condenou a Grécia a três anos de quarentena, na tentativa vã de iludir a natureza sistémica da doença que a corrói.
A reunificação da Alemanha e a adesão dos novos estados da Europa Central e de Leste, na sequência da dissolução da União Soviética, constituem a demonstração do êxito da construção europeia. Contudo, a velocidade e a grande latitude do alargamento reclamavam uma reforma urgente das instituições que ficaria seriamente comprometida pelo fracasso da ratificação do tratado constitucional, ingloriamente assinado por todos os chefes de Estado e de Governo presentes em Roma, em outubro de 2004.
Em conclusão, é urgente reinventar "um novo federalismo" que dispense a Europa de decidir, de falar e de se fazer representar por chefes de governos nacionais e que obtenha os recursos financeiros de que carece para promover as suas políticas, diretamente, dos cidadãos europeus.