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Vai para quarenta anos que conheço Joaquim Manuel Magalhães (JMM). Eu ia começar a escrever para o “Semanário”, e quis que o primeiro texto fosse sobre ele. Ou, melhor, sobre um livro dele, “Os Dois Crepúsculos”, o primeiro incluído neste volume de 1184 páginas - de que esta crónica se ocupa -, intitulado “Poesia Portuguesa Contemporânea”, da “Bestiário”, 2023. Reúne tudo o que JMM escreveu sobre poesia portuguesa porque, “a partir de 2007, percebi que nada mais me apetecia escrever sobre o assunto”. Não se trata de “uma história contemporânea da nossa poesia ou um projeto com intuito de indicar um qualquer cânone (conceito por mim detestado, uma vez que somente os poetas de cada época, na sua sobrevivência diacrónica, o podem ir instituindo e nem sequer um apenas o pode fazer por si)”. Mas o livro “dos livros” vai mais além. Em alguns dos textos, éditos ou que estavam inéditos até JMM os juntar na última parte, a quarta, sob o título “António Maria António Pedro”, existem incursões ironistas, sérias, sobre o que tem sido, e é, a sociedade portuguesa, a sua “cultura”, os seus costumes, numa palavra minha, a sua “identidade”. Mesmo que a instância seja um verso, uma tradução, a devastação do litoral, o desaparecimento das livrarias, o declínio da Antena 2 da RTP, o ensimesmamento literato, o putedo “intelectual”, Kavafis, Pound ou Eliot. Somos bons amigos, também, porque discordamos de tantas quantas as coisas que apreciamos juntos, rindo saudavelmente dessas nossas fraquezas, afinal força para escrever, ou não, assim ou assado, para ir ao César Monteiro. Já tinha lido, e aqui e ali relido, as três primeiras partes, autonomamente, pelo que fui logo direito à quarta. “Querem ter um povo educado? Um país desenvolvido? Uma coletividade capaz de múltipla imaginação do seu próprio futuro? É claro que não. Estes fulanos que nos governam querem é o vazio. E depois o vazio que vote neles”. Nestas mais de mil páginas tão diferentes daquilo a que os escaparates vulgares nos habituaram, é difícil escolher. Olhem, logo, por exemplo, a partir da 565: “Demasiado poucas palavras sobre Florbela”. “Sempre achei que quando entramos no campo das sexualidades é como entrar no campo dos inconscientes. E ninguém me venha dizer: ‘o meu inconsciente é igual ao teu’. O corolário óbvio é que nenhuma sexualidade é igual a nenhuma sexualidade”. Uma palavra para os editores do JMM. Um belo trabalho, que coube nos oito centímetros de lombada, “dentro do estrito rectângulo que por pouca terra nos coube em sorte”.
O autor escreve segundo a antiga ortografia. Joaquim Manuel Magalhães segue o Acordo Ortográfico de 1990.