Não há outra forma de qualificar o episódio que manchou as mais recentes eleições legislativas: triste, demasiado triste. Graças a um acordo de cavalheiros não cumprido entre PSD e PS, com o alto patrocínio da Comissão Nacional de Eleições, foram deitados ao lixo 157 mil votos de emigrantes. Um desfecho vergonhoso, desrespeitador da vontade popular de milhares de portugueses que, mesmo à distância, não se furtaram a pronunciar-se sobre o futuro político do país; e revelador de uma tremenda falta de sentido de Estado dos intervenientes.
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Afinal, o que se passou? Depois de, a 18 de janeiro, PS e PSD terem chegado a um consenso para permitir que todos os votos fossem contados, desde que os eleitores estivessem corretamente identificados - e isso não implicava ter associada uma cópia do cartão de cidadão -, vários dias depois das eleições o PSD mudou de ideias: sem aquele documento os votos não valiam. Com uma bizarria pelo meio: a contagem fora da Europa foi validada, a contagem da Europa foi chumbada, tendo sido anulados mais de 80% dos votos desse círculo.
Nada disto, porém, é novo, o que torna ainda mais lamentável esta desfaçatez democrática. Já em 2019 tinha havido problemas com 34 mil votos de emigrantes por ausência de uma cópia do cartão de cidadão. Na ocasião, o PSD conseguiu a anulação desses boletins, o que lhe valeu a eleição de mais um deputado. Três anos passaram e nada foi feito.
Agora, apesar desta demonstração de terceiro-mundismo dada pelos dois maiores partidos políticos portugueses, nenhum achou pertinente levar o tema ao crivo do Tribunal Constitucional (entretanto, o Livre e o Volt Portugal recorreram, e bem, da decisão junto daquele órgão), pela simples razão de que isso podia atrasar a tomada de posse do Governo (argumento do PS) e porque a lei tinha mesmo de se cumprir (argumento do PSD).
Na verdade, um e outro não quiseram incomodar-se porque na aritmética final elegeram dois deputados cada, como tem acontecido.
Terem sido mandados para o lixo 157 mil votos por causa de uma diatribe burocrática é um dano colateral que temos de estar dispostos a aceitar. Agora vão todos a correr mudar a lei eleitoral. Portugal é, em demasiados momentos, uma velha cassete cheia de bolor.
Diretor-adjunto