Foi nas salas dos nacionais - São João, no Porto, e Dona Maria, em Lisboa - que aprendi a ver teatro.
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Outras pessoas terão outros percursos, marcados pelos estofos mais ou menos estafados das cadeiras de outras salas, mas este é o meu. Foi no São João que vi a Sara Barros Leitão em cena pela primeira vez, e foi talvez por essa razão que voltei ao Dona Maria, onde montou um espetáculo comovente sobre a história do Teatro Experimental do Porto. Na sala-estúdio do Dona Maria conheci "As criadas", um clássico, e vi a Cartografia de 20 mulheres a testarem os limites da sua resistência física; escondida na sala de cenografia estava Osmarina Pernambuco, uma mulher comum, para nossa sorte trazida do Brasil em diários; e em plena crise vi uma menina atravessar o palco principal acompanhada por Judy Garland, um urso de peluche, para confrontar Passos Coelho com o desemprego do pai.
Como eu, há mais gente para quem os teatros nacionais e municipais, pela sua projeção e centralidade, são a porta para um mundo de tantas possibilidades quanta a diversidade que neles couber. Se pensarmos bem, é para isso que os queremos - e que os financiamos: para garantir o nosso acesso a um pouco de tudo e para dar um pouco de espaço ao maior número possível de histórias, expressões, visões.
É porque acho que devemos ser intransigentes com o papel da cultura em democracia que não podemos ignorar as denúncias que nos têm chegado sobre as práticas de censura no Teatro Municipal do Porto (TMP).
O livro e folha de sala do espetáculo "Turismo" foram retirados de circulação devido a uma frase da escritora Regina Guimarães que questionava a utilização do conceito de "cidade líquida" pelo ex-vereador da Cultura. Tiago Guedes, diretor do TMP, disse que o fez com o consentimento de Tiago Correia, o encenador, que esclareceu: "O que Tiago Guedes chama "concordar", eu chamo de censura, chantagem emocional, coação, ameaça e abuso de poder". Ficamos então a saber que o TMP já tinha proibido a utilização de certas expressões do "Turismo" porque poderiam pôr em causa as políticas de habitação do município. A denúncia foi o mote para outros artistas - e a todos quero prestar a minha solidariedade - que decidiram contar à Imprensa as suas experiências com o TMP. A título de exemplo, Sara Barros Leitão, a quem chegou a estar encomendado o projeto da rentrée do Rivoli, conta que lhe foi pedido para garantir que nenhum dos artistas comprometeria a Câmara Municipal do Porto.
Os teatros públicos servem para provocar e divulgar criações artísticas, não servem para produzir propaganda do Ministério da Cultura, do Governo ou de uma Câmara Municipal, sejam quais forem os "limites da decência" dos seus autarcas. Ponto.
*Deputada do BE