Dentro da mente do Kremlin através de Surkov
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O nome não é muito conhecido, mas Vladislav Surkov constitui-se como o principal ideólogo das políticas de Vladimir Putin, o que significa que conversar com ele é entrar na cabeça do presidente da Rússia. Este arquiteto do sistema político russo, inspirador de “O mago do Kremlin”, de Giuliano da Empoli, remeteu-se ao silêncio desde a invasão da Ucrânia, mas aceitou agora dar uma entrevista (por escrito) à revista “L’Express”. E aquilo que diz deve ser escutado com atenção.
As respostas são meticulosamente calculadas e nelas se reflete não apenas o pensamento de um dos mais influentes estrategas da designada “democracia soberana” que se instalou na Rússia, como espelham o modo como o Kremlin se relaciona com o Mundo num tempo de forte tensão internacional. A opção de conceder uma entrevista a uma revista francesa significa a vontade de transmitir uma mensagem clara à Europa que pode resumir-se assim: a Rússia não vai desistir da Ucrânia, ambiciona expandir as suas fronteiras num Mundo em que conta, acima de tudo, com a força de um poder que quer intensificar: “o mundo russo não tem fronteiras. Estendemo-nos em todas as direções, tão longe quanto Deus quiser e nós o conseguirmos.”
Oiçamos o que escreve sobre a Ucrânia. Para Surkov, Kiev não passa de uma entidade política artificial, resultado das tentativas ocidentais de colonização. Na sua perspetiva, o objetivo de Moscovo nunca mudou: “a vitória será o esmagamento militar e diplomático da Ucrânia. A partilha deste quase-estado em fragmentos será atingida.”
A nova administração norte-americana não provoca grandes euforias na Rússia. Surkov assegura que “Trump não é uma pessoa de fazer aliados”, embora ideologicamente esteja mais próximo de Putin do que de Macron. Na sua opinião, os EUA ainda precisam de passar pela sua própria perestroika: “a perestroika soviética provocou o afundamento do bloco de Leste. Será que a UE e a NATO afundar-se-ão da mesma forma?”. A pergunta retórica integra em si a perigosa expectativa de uma desejada implosão do Ocidente. Quanto à China, o entusiasmo é moderado: trata-se de um parceiro tático, mas não de um aliado inquestionável. Em relação à União Europeia, Surkov considera-a “uma estrutura obesa”, que cresceu “em quantidade, mas não em qualidade”.
A entrevista, mais do que uma reflexão sobre os rumos da política russa, é um testemunho do pensamento político que molda o Kremlin. Num momento em que a ordem global está muito vulnerável a fluxos de incerteza, a visão de Surkov evidencia que a Rússia prossegue com sua estratégia imperturbável, guiada por uma narrativa que mistura expansionismo, pragmatismo e desdém por uma conceção ocidental de soberania e de liberdade. O Mundo está cada vez mais em perigo.