<p>Daqui a muitos anos, como tratarão os historiadores o actual apocalipse financeiro? Como uma crise que se curou, regressando a Humanidade aos seus hábitos? Ou enquanto momento, traumático, de transformação do mundo velho em novo?</p>
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Há que distinguir, no actual pessimismo, entre "valores" e "instituições".
Não parece haver nada de errado no primeiro campo. Incluindo a aquisição, por muitos povos, de liberdade individual, responsabilidade pelos seus actos, capacidade de decidir a vida própria. Não é censurável a progressão, no sentido de premiar o mérito, o trabalho, a realização e a inovação.
Ninguém criticará o fim dos impérios e dos sistemas políticos baseados numa ideologia única, ou numa classe dominante.
Mas várias instituições falharam.
Parece estranho que tenham soçobrado, acima de tudo, os bancos, símbolos tradicionais, para muitos, da respeitabilidade e da confiança. Foi, aliás, essa respeitabilidade e confiança que lhes permitiram obter, criar e reproduzir fortunas.
Mas havia esqueletos nos armários.
E segredos.
Segredo revelados, mas quando já era demasiado tarde.
Um livro interessante sobre o assunto é "The power of paper" (*), de Chrisopher Ondaatje. Quando foi publicado, há dois anos, poderia parecer poderoso, mas banal. Hoje, surge como premonição exacta.
Christopher, homem das arábias e dos sete ofícios, nascido no Ceilão, empresário e economista, aventureiro e financeiro, tem um irmão mais famoso, Michael, autor de "O doente inglês".
Ondaatje escreve uma fascinante história do papel, e do seu poder, dos papiros aos jornais, dos embrulhos aos cheques, dos livros ao dinheiro. Na contracapa, um empregado da "Wall Street" varre o chão, coalhado de folhas de todo o género, no fim de uma sessão agitada, ou desesperada.
Mas o livro fala também do "abuso do papel". Sobretudo no sistema financeiro global, que inundou os antigos países "socialistas", o velho capitalismo, o Terceiro Mundo e o Ocidente. Os "banqueiros de olhos azuis" tinham muitos cúmplices, de olhos amendoados e pele escura.
Para Ondaatje, tudo começou com o abandono, em 1931 e 1971, pelos banqueiros ingleses e americanos, da convertibilidade monetária em ouro.
Diz que nas últimas três décadas, e com especial rapidez nos últimos dez anos, o valor do dinheiro passou a corresponder apenas… a papel.
As transacções, compras e vendas, aquisições e fusões, tomadas de posição, movimentos na Bolsa e nos mercados, passaram a carecer de tradução no mundo da "economia real", origem dos bens e serviços.
Por outras palavras, passou a ser possível a um empresário enriquecer, enquanto a sua empresa empobrecia. Seria possível coexistir uma riqueza virtual, assegurada por mecanismos artificiais "institucionalizados", e uma real pauperização das estruturas produtivas, decadência competitiva, decréscimo tecnológico, pulverização do património detido pelos indivíduos e famílias.
O autor aconselhava assim a que cada cidadão, sem deixar completamente de arriscar, olhasse para bases sólidas, procurando viver sem dívidas excessivas, com casa própria e bens de consumo corrente em suficiência.
Não se tratava de sobreviver a uma guerra nuclear, dentro dum "bunker", mas quase.
Dizia Ondaatje: "As fundações do capitalismo global são hoje tão finas como o papel, e parecem destinadas a cair, causando a completa confusão e o caos".
Daqui a muitos anos…
(*) Harper and Collins, ao que sei ainda não traduzido em português.