Seria aceitável um governante acumular funções, por exemplo, com a profissão de advogado ou com qualquer outra atividade financeira? Não, obviamente.
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No entanto, não se faz o mesmo raciocínio quando estão em causa os deputados. Ora, poderá a Casa da Democracia ter parlamentares a tempo parcial que se dedicam igualmente a outro trabalho? Não me parece. Por dois motivos: porque os desvia do que há para fazer e porque introduz nos corredores da Assembleia da República suspeições de influências ilícitas.
Confesso que criei uma enorme expectativa quanto ao trabalho que a Comissão Eventual para o Reforço da Transparência no Exercício de Funções Públicas faria ao nível da reformulação do Estatuto do Deputado. Passados três anos, eis que tudo cai brutalmente por terra. Numa madrugada em que se esticaram as votações, os membros dessa comissão, também eles deputados, inverteram a tendência para aumentar as restrições de que tanto se falara. Assim, na próxima legislatura, lá continuaremos a ter deputados-advogados, deputados membros de sociedade de advogados que trabalham para o Estado, deputados a desenvolver atividade no setor financeiro... Claro que aqui e ali se introduzem alguns tiques de ética para desviar o olhar de um poço sem fundo. Por exemplo, os deputados professores universitários podem continuar a dar aulas, desde que não aufiram uma remuneração suplementar por isso. Ainda bem que assim é, porque, como todos sabemos, uma universidade é um sítio de enormes lóbis, nada comparável a uma sociedade de advogados...
Perante tais decisões, seria normal que se abrisse um debate aceso, musculado, intenso... Nada disso aconteceu. Porquê? Porque, em Portugal, grande parte do comentário sobre a atualidade está entregue a políticos, principalmente a deputados. E a estes não interessa agendar este tópico. Pelo contrário. Atenda-se à altura em que tudo isto foi aprovado: uma sexta-feira pela madrugada adentro... Interessante. Nos dias seguintes, apenas se noticiou o sucedido e o assunto desapareceu do espaço público mediático. Mesmo os deputados em exclusividade lá se mantiveram calados, porque sabem que os mais influentes do seu grupo estão do lado daqueles que acumulam funções. Por isso, é melhor não levantar muitas ondas...
Pela minha parte, o assunto não está fechado: como cidadã gostaria que os deputados que me representam o fizessem em exclusividade. Para bem da qualidade da democracia. E da transparência do exercício político.
*PROF. ASSOCIADA COM AGREGAÇÃO DA UMINHO