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De uma médica de família que trabalha num Centro de Saúde deste país, recebi o email que abaixo transcrevo e que reproduz a crua realidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e do trabalho médico.
Denunciar a verdade é uma maneira de defender os doentes e pressionar a resolução dos graves problemas do SNS, mas também uma forma de prestar homenagem aos médicos de família que, por esse país fora, trabalham em condições adversas, com a vocação e o espírito de missão de assistir os seus utentes.
Espero que o próximo ministro da Saúde leia e medite nestas linhas:
"Venho por este meio demonstrar o meu pesar pelas atuais condições de trabalho a que estão sujeitos os médicos que - de forma teimosa e algo masoquista - optam por se manter no SNS.
Escolhi Medicina por ser de uma longa linhagem de doentes, mantidos vivos e com boa qualidade de vida graças aos esforços daqueles mesmos médicos. No entanto, terminada a especialidade há apenas 4 anos, nunca pensei chegar o dia de estar a escrever estas palavras, com uma profunda sensação de mágoa perante um SNS que nos maltrata a nós e aos doentes de forma como nunca eu (ou os meus) foram tratados enquanto utentes.
sou médica de família e o meu dia começa com as solicitações constantes de 1800 e qualquer coisa utentes que, ultrapassando o que está estipulado pela lei que rege o meu contrato de 40 h de trabalho semanais, ascendem a 2500 unidades ponderadas, com consequentes e inevitáveis maus tempos de resposta da minha parte. Ainda assim, as direções e as ARS insistem que as listas devem chegar aos 1900, pelo que a luta e o desgaste são diários e intensos, numa tentativa vã de manter a melhor prestação de cuidados possíveis a esses utentes. Vivemos em clima de medo, tapando buracos aqui e ali.
O decorrer das consultas é cheio de problemas, desde o toner que não existe, ao servidor informático que teima em não funcionar. Ainda hoje não temos o sistema informático operacional (desde as 9h e sem previsão de resolução), pelo que, com os múltiplos utentes idosos das nossas listas que não sabem o que tomam ou o motivo pelo qual foi marcada consulta, se torna impossível a realização das mesmas!
Continuamos a trabalhar num prédio sem condições, com instalações onde utentes e profissionais caem com frequência, sem qualquer previsão de mudança, como se a necessidade de instalações com qualidade e funcionalidade fosse um mero capricho dos recém-especialistas; a última queda resultou numa fratura de úmero e rotura muscular numa idosa.
Mais haveria para dizer, mas sabendo que não terá também os meios para mudar o que todos gostaríamos de ver melhorado, despeço-me com os melhores cumprimentos, servindo o presente email de desabafo".