Descentralização administrativa e criatividade territorial (II)
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Como vimos no primeiro artigo, no século XXI, em 2025, a descentralização administrativa não é, apenas, uma mera questão de direito administrativo, mas, muito mais, um assunto decisivo de cultura política do território em plena sociedade do conhecimento. Nesta linha de pensamento, vale a pena começar por recordar o lado constitucional do problema.
A cultura política constitucional
Em termos de cultura política do território, a nossa constituição estabelece que:
- Artigo 2º “O estado de direito democrático deve aprofundar a democracia participativa”
- Artigo 6 “O Estado respeita na sua organização e funcionamento os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização administrativa da administração pública.
- Artigo 16 “Os preceitos constitucionais e legais devem ser interpretados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)”
- Artigo 48 “Todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direção dos assuntos públicos, diretamente ou por intermédio de representantes eleitos”.
- Artigo 236 “As regiões administrativas fazem parte do poder local, o poder regional fica reservado para as regiões autónomas”.
- Artigo 277 “São inconstitucionais as normas que infringem o disposto na constituição ou os princípios nela consignados, por exemplo, a democracia participativa e o estado subsidiário”.
A estes artigos da nossa constituição devemos acrescentar o artigo 1º do Tratado da União Europeia (TUE), quando refere que “Todas as decisões políticas devem ser tomadas pelo nível de decisão mais próximo possível dos cidadãos”. Este conjunto de valores e princípios aponta, claramente, para uma nova cultura política do território que é preciso praticar com muita dedicação.
Os fatores de condicionalidade no quadro europeu
Um segundo aspeto que afeta profundamente a inteligência coletiva territorial e a cultura política do território diz respeito ao modo como cada país e os seus territórios interpretam e aplicam os fatores de condicionalidades impostos pelo policy-framework europeu. Senão, vejamos.
- Em primeiro lugar, a mudança das regras orçamentais do pacto de estabilidade no sentido de uma maior diferenciação dos programas de estabilidade nacionais em linha com a política conjuntural e as reformas estruturais de cada Estado membro e o que daí decorre em termos de procedimento por défice excessivo, afetam e condicionam as funções das ajudas de estado e outros incentivos nacionais em matéria, por exemplo, de política de reindustrialização europeia.
- Em segundo lugar, a mudança das regras de sustentabilidade do pacto ecológico, em linha com as metas de neutralidade carbónica e as novas métricas de sustentabilidade ESG, afetam as políticas ambientais domésticas e causam inegável perturbação, por exemplo, nas diversas escalas de adaptação do universo empresarial.
- Em terceiro lugar, a mudança nas medidas regulatórias do pacto digital com as novas leis do mercado e serviços digitais e agora, também, da inteligência artificial, afetam profundamente a adaptação do universo burocrático-administrativo e, em consequência, a interoperabilidade digital e regulatória com o mundo empresarial.
- Em quarto lugar, a mudança das regras de harmonização legislativa e fiscal em matéria de novos recursos próprios, as medidas dirigidas à criação do mercado único de capitais e as novas regras de mutualização da dívida conjunta europeia, são fundamentais para iniciar as novas políticas europeias, por exemplo, no que diz respeito à aplicação do Relatório Draghi.
- Em quinto lugar, as novas regras aduaneiras, comerciais e de investimentos em consequência do novo quadro geopolítico de relações com a China, os EUA e outras áreas geográficas da economia internacional põem em causa os meios financeiros que serão afetados à política de vizinhança europeia e ajuda internacional no leste e sul da Europa, em especial, no Grande Médio Oriente e na margem sul do mediterrâneo.
- Finalmente, e em consequência de uma eventual redução do apoio americano à Ucrânia, que meios financeiros irão ser afetados à política europeia de segurança e defesa (PESD) no quadro da guerra e do pós-guerra entre a Ucrânia e a Rússia e, nesse contexto, que
meios financeiros irão ser afetados à reconstrução da Ucrânia e às ajudas de pré-adesão do futuro grande alargamento ao leste europeu?
Todas estas alterações terão profundos impactos orçamentais e duas políticas europeias mais convencionais serão particularmente afetadas, a política de coesão territorial e a política agrícola comum que, em conjunto, representam praticamente dois terços do orçamento europeu. Nada será como dantes nas dotações dos fundos europeus e para antecipar muitas dessas mudanças muita criatividade nas políticas regionais será necessária.
Os fatores de criatividade da inteligência coletiva territorial
A cultura política constitucional e o policy-framework europeu são, ao mesmo tempo, um fator de condicionalidade e um fator de criatividade para a inteligência coletiva e a estratégia nacional dos territórios inteligentes. Vejamos, num plano mais analítico, as abordagens criativas em aberto:
- Em primeiro lugar, uma criatividade estratégica e programática (1) para antecipar os impactos estruturais das grandes transições sobre os territórios regionais; falo das transições climática, energética, ecológica, tecno digital, demográfica e migratória, geopolítica e securitária, socio laboral e socio cultural.
- Em segundo lugar, uma criatividade sistémica e operacional (2) para pôr em ordem todos os novos custos e benefícios que decorrem daqueles impactos e que alteram substancialmente os custos de oportunidade dos territórios regionais; falo de custos de contexto, de formalidade e certificação, administrativos e burocráticos, de cobertura de riscos, de regulação e supervisão, de crédito e garantia de crédito, que, no conjunto, mudam a competitividade das regiões.
- Em terceiro lugar, uma criatividade cognitiva e científica (3) no que diz respeito à forma de observar e abordar os problemas, pois não podemos resolver problemas novos com conceitos velhos.
- Em quarto lugar, o modo criativo de abordar a modernização ecológica (4) no que diz respeito ao pacto ecológico, em especial, o modo de tratar as internalidades e externalidades da economia circular.
- Em quinto lugar, o modo criativo de abordar a transição digital (5), em especial no que diz respeito à smartificação dos territórios regionais e, em particular, à formação das plataformas analíticas territoriais da estratégia nacional dos territórios inteligentes (ENTI).
- Em sexto lugar, o modo criativo como desenhamos as hiperligações entre economia produtiva e economia da cultura (6), em especial o modo como articulamos as inteligências emocional e racional no tecido capilar do território.
- Em sétimo lugar, o modo criativo como abordamos e resolvemos o atrito político-administrativo (7), em resultado da transferência de atribuições, competências e recursos e tal como parece decorrer da atual instabilidade governativa e inércia administrativa.
- Em oitavo lugar, o modo como fazemos a escolha dos líderes dos territórios regionais (8), em particular os critérios 4C - conhecimento, cultura, cooperação e comunicação – que são decisivos para montar o sistema operativo da política regional e a interoperabilidade dos seus vários subsistemas regionais.
Em todos os casos, está em causa o modo como se procede, na prática e em cada território, à interoperabilidade de todas estas estratégias de atuação.
Notas Finais
A terminar, duas notas finais, também elas criativas. A primeira reporta-se à economia do Programa de Recuperação e resiliência (PRR). No meu entendimento, existe um potencial imenso de criatividade expresso na filosofia e prática das agendas mobilizadoras e consórcios empresariais que, com as devidas adaptações, pode ser transposto para os programas operacionais regionais (POR) de modo a criar um tecido empresarial mais articulado e interoperável. A segunda nota tem a ver com uma dimensão da política de coesão que precisava de ser mais claramente explicitada e apoiada por conter, igualmente, um potencial criativo imenso. Falo do reforço da Europa das Cidades e das Regiões e, em particular, das várias redes de cidades e regiões que podem funcionar como pontos de aplicação de programas europeus e inter-regionais de uma verdadeira economia criativa e colaborativa. Fica a sugestão.