Descentralização administrativa e inteligência institucional (I)
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Em matéria de descentralização administrativa, o que parece, à primeira vista, uma boa decisão política, pode revelar-se um logro monumental se se mantiver a lógica global dominante do Estado-silo-vertical. Ou seja, em vez de reduzir substancialmente o minifúndio clientelar, a descentralização administrativa pode sobrecarregar o universo burocrático-administrativo que lhe serve de suporte. Senão, vejamos.
Em primeiro lugar, o país bipolar que nós somos. De um lado, um poder centralizado, vertical e unitário de longa data, de outro, um poder local liliputiano onde se cultivam as pequenas constelações de poder, isto é uma figuração quase perfeita daquilo que poderíamos designar como o país do minifúndio institucional. Com efeito, no nosso país, esta ideologia bipolar é o caldo de cultura ideal para nela germinar uma sociedade intersticial onde se formam e cultivam pequenas redes de cumplicidade e pequenas constelações de poderes no interior das quais se faz o tráfico de influências e a intermediação necessária aos arranjos de conveniência. Nestas condições, o minifúndio clientelar e institucional é uma espécie de película fina que cobre toda a sociedade portuguesa, na sua maior parte quase invisível, com algumas irrupções mais agudas aqui e ali, mas sempre com o mesmo ADN, qual seja, um arranjo de conveniência instruído nos interstícios do país bipolar e vertical.
Existem boas razões para este estado de coisas. Desde logo, o exclusivismo partidário na estruturação e formação da cultura política dos cidadãos que foi sendo alimentado pelo sistema eleitoral proporcional de listas fechadas e pelo controlo estrito das direções partidárias sobre a seleção de candidatos aos círculos plurinominais de dimensão muito variável. Depois, o rotativismo partidário do bloco central que estabeleceu uma espécie de acordo político tácito no que diz respeito à proteção dos interesses particulares dos dois maiores partidos e à distribuição dos respetivos privilégios. Finalmente, a abdicação precoce da chamada sociedade civil que parece ter preferido, desde muito cedo, a indiferença e a cumplicidade para resolver os problemas.
A estas razões pode adicionar-se uma descentralização administrativa que aumenta os níveis do poder local – freguesia, município, comunidade intermunicipal, região administrativa – mas que não altera, substancialmente, a lógica do Estado-silo, hierárquico e vertical, o clássico partido-estado-clientelar do rotativismo bipartidário PS-PSD, que funciona segundo uma espécie de mínimo denominador comum visando minimizar ou mitigar os danos colaterais de natureza político-partidária causados pela rotação eleitoral. É este partido-estado-clientelar, uma espécie de meta-partido, que pode pôr em causa uma bem-intencionada descentralização administrativa, como vítima do calculismo e da tática político-partidária, em particular de um campo de recrutamento onde se faz o treino e a reciclagem dos dirigentes partidários. Este campo é imenso, pois o partido-estado tem ramificações dentro e fora do aparelho de Estado, uma vez que se estende ao chamado sector empresarial do Estado, num vai e vem permanente entre o que fica dentro e o que fica fora do chamado perímetro orçamental.
Em segundo lugar, a efetivação da designada estratégia nacional para os territórios inteligentes (ENTI) aprovada pela RCM nº176(2023 de 18 de dezembro. O PRR (até 2026) e o PT 2027 (até 2030), pelas transições que promovem e pelas agendas inovadoras que mobilizam, constituem uma excelente oportunidade para combater o minifúndio institucional, se, para tanto, a sociedade civil for capaz de agenciar a inteligência coletiva territorial em redor de plataformas colaborativas 4C para esta década - conhecimento, cooperação, cultura e criatividade – e de uma inteligência institucional verdadeiramente inspiradora. Se tal não acontecer, o Estado-silo-vertical torna-se, mais uma vez, a estrela da companhia e o instrumento principal de redistribuição, por via do imposto, dos benefícios fiscais e financeiros, da parafiscalidade e de muitos privilégios corporativos e regulatórios. Não admira, portanto, que se formem à sua volta pequenas, médias e grandes constelações de interesses e, também, o minifúndio institucional que gira em torno das pequenas redes de influência e cumplicidade.
Ora, a este propósito, o mais inquietante ao longo desta década, é, mesmo, a zona de interface entre o poder normativo dos mestres-algoritmos de Bruxelas que gerem os fundos europeus e o estaleiro burocrático de Lisboa para administrar esses mesmos fundos. Se pensarmos no modelo de governação do PRR 2026 e no modelo de governação do PT 2030, com comissões políticas de coordenação, comissões de acompanhamento, estruturas de missão técnica, comissões de auditoria, controlo, monitorização e execução, autoridades de gestão dos programas operacionais e regionais, agências e gabinetes de planeamento, às quais teremos de juntar as autoridades inspetivas, as autoridades regulatórias, os tribunais administrativos e de contas, os sistemas de crédito e avaliação do banco de fomento nacional e do sistema bancário, as direções gerais, as CCDR e as autarquias e o rol dos seus inúmeros pareceres e, ainda, esse pequeno monstro burocrático que responde pelo nome de código de contratação pública, uma teia no sentido próprio, e nos interstícios da qual se formarão inúmeras constelações de interesses mobilizados por
aqueles programas. Se pensarmos em tudo isto, não podemos deixar de sentir um forte amargo de boca e talvez a nossa reação mais imediata seja acomodar a próxima rede de influência e cumplicidade para tratar do nosso problema pessoal ou de grupo, isto é, o nosso próprio minifúndio institucional e corporativo.
Em terceiro lugar, a inovação em matéria de inteligência institucional e reforma da administração. Nesta década, com tantos programas, agendas e recursos financeiros por via do PRR e do PT 2030, se não inovarmos em matéria de inteligência institucional e reforma da administração, acabaremos por reproduzir o estado vertical e o minifúndio institucional. O que fazer, então, para combater e/ou minimizar este problema estrutural de longa duração, a reforma do Estado-silo-vertical, sem a qual a política de descentralização administrativa pode revelar-se mais um logro político-administrativo do que uma verdadeira oportunidade?
Desde logo, como vivemos em plena sociedade do conhecimento, precisamos de mobilizar o conhecimento e a inteligência coletiva para eleger e resolver os problemas que são verdadeiramente estruturais e relevantes: a organização de um cluster setorial, uma cadeia de valor, uma rede urbana e os seus serviços de proximidade, um centro de inovação e transferência de tecnologia, as economias de rede de uma ou várias áreas industriais, os problemas de internacionalização e marketing territorial de produtos de origem, a implementação de um contrato de desenvolvimento territorial com uma CIM, a formação de uma smart city, um projeto transfronteiriço, entre outros exemplos.
Em todos os exemplos referidos, devemos privilegiar a abordagem colaborativa e os espaços de cooperação e parceria e, para tal, dar forma e corpo a essa nova inteligência institucional, criando, para o efeito, uma estrutura de missão horizontal e um ator-rede que sejam capazes de expressar a vontade coletiva e a nova institucionalidade das economias de rede em formação. Em vez de fazer render um capital de queixa acumulado, a solução passa por incentivar a formação de redes de cidades e vilas, redes de conhecimento com as universidades, redes de cultura com os artistas e as associações culturais e redes de extensão empresarial com as associações respetivas.
Estas redes colaborativas, para poderem funcionar eficazmente, exigem uma infraestrutura tecnológica e digital apropriada, em especial o alargamento das redes 4G e 5G a todo o território, e a constituição de um ator-rede como o incumbente principal de um ecossistema digital de base territorial para levar a cabo um programa de ação com os seguintes objetivos: as qualificações e competências dos ativos, o reforço do sistema de inovação e transferência de ciência e tecnologia, a transformação digital das PME e a melhoria substancial da sua gestão, o reforço dos mecanismos de capitalização das PME e sua reorganização empresarial, o alargamento da esfera de produção de conteúdos 4C e a aposta na criatividade para alargar o valor acrescentado das cadeias de base territorial.
Finalmente, a necessidade de apostar na territorialização das políticas públicas, de reduzir os seus custos de contexto e de descentralizar o modelo de operacionalização do PRR, remete-nos para as autoridades de gestão regionais (CCDR), sempre numa lógica de parceria institucional colaborativa que seja politicamente cristalina e transparente.
Notas Finais
Estas são, julgamos, as razões principais pelas quais a reforma administrativa do século XXI não terá nada a ver com a reforma administrativa do século XX. Por paradoxal que possa parecer, uma descentralização administrativa em 2025 não é um assunto de direito administrativo, mas de cultura política do território que não se resolve com uma publicação em diário da república. De um lado, o front office das administrações será muito mais desmaterializado e, de outro, o back office será concebido para abordar e tratar o problem-saving muito mais do que o problem-solving que, desta vez, caberá à democracia participativa da sociedade civil e a um estado-subsidiário resolver. Dito de outra forma, os serviços presenciais serão em menor número (lojas do cidadão e lojas empresariais) e os serviços de extensão e assistência ambulatória em maior número, com a ajuda das plataformas colaborativas e em parceria com as estruturas associativas. Um exemplo concreto diz respeito às instituições de ensino superior. Em cada capital de distrito existe uma instituição de ensino superior e, também aqui, a desmaterialização de uma parte do ensino presencial será inevitável, pelo que a outra parte da atividade das instituições de ensino superior deverá ser dedicada à formação de redes de cooperação, assistência e extensão à comunidade. Falo de uma verdadeira revolução na inteligência coletiva territorial, de uma genuína pluriversidade.