Escrevo-vos na véspera do dia que, se tudo correr bem, não ficará na história: o primeiro dia do resto das nossas vidas, o dia zero do regresso à atividade. Normalmente, o que fica na história é o que corre tremendamente mal.
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OK, há honrosas exceções: o golo do Éder, a chegada do Homem à Lua, a descoberta da vacina contra o coronavírus... mas como esse dia parece estar mais longe do que um novo golo de Ederzito pela nossa seleção, vamos ter que arriscar escrever a história de outra maneira. Começar seja o que for a uma segunda-feira, apesar de ser regra instituída pelo calendário gregoriano, tem tudo para dar mau resultado. Veja-se o que sucede com as dietas. Começamos cheios de força à segunda e na terça já esmorecemos, abrindo uma pequena exceção para um pacotinho de bolachas, por sinal, excecionais. Acho que fazia mais sentido começar este desconfinamento progressivo a uma quinta-feira. Eram só dois dias de regresso à atividade, e depois voltávamos ao conforto do lar. É que, parecendo que não, fazer este desmame assim de repente até pode ser perigoso.
O confinamento é como aqueles antidepressivos cuja toma não pode interromper-se abruptamente, sob pena de ficarmos ainda pior do que estávamos antes. E, depois de quarenta e tal dias em casa, temo que as pessoas estejam mais desejosas de toque humano do que nunca. Com uma vontade indomável de abraçar o próximo, de lhe dar palmadões nas costas, de beijar a senhora do café, de mexer o próprio café com a colher do freguês do lado (OK, esta, se calhar, já é exagero, mas há gente para tudo...). Aliás, ninguém me tira da ideia que o grande perigo do regresso do campeonato de futebol são as discussões que ele gera. Parece que já estou a ver os perdigotos a voar em "slow motion", como se fossem imagens do VAR, enquanto um indivíduo grita que "está fora de jogo".
O desconfinamento vai fazer-se em três fases. Para começar, podem reabrir as lojas de bairro. O raciocínio por trás disto parece ser "também nunca ninguém lá ia, não há de ser agora que vão todos lembrar-se de ir à boutique da Ruth Rita em Telheiras"... As livrarias e bibliotecas tiveram a mesma sorte: são sítios tão pouco frequentados, que ninguém vê perigo de maior em reabri-los. As bibliotecas, além do mais, já adotaram uma medida de segurança há décadas, muito antes desta pandemia: só se pode falar baixinho, o que diminui bastante a projeção de gotículas. Depois, temos os cabeleireiros, porque já se viu que as pessoas aguentam bem sem ir às urgências (as que não falecem), mas com cabelo comprido é que não. Ficam com os nervos em franja se lhes vedam o direito de aparar a franja. E se há lobby que exerce forte pressão sobre os decisores é o das mulheres descabeladas. Não que sejam muito poderosas, mas são muito difíceis de aturar. Também os stands de automóveis foram contemplados com a hipótese de abrir portas nesta primeira etapa. Para quê? Não sei bem. Quem é que quererá comprar um veículo novo numa altura em que não se pode ir a praticamente lugar nenhum de carro, e em que muitas pessoas ficaram sem dinheiro sequer para abastecer? Bom, talvez baste abrir os stands que vendem topos de gama, que só quem for a caminho do green para jogar golfe é que terá a ideia de ir fazer um test drive ao novo modelo da Mercedes. Os outros estarão mais preocupados em não contrair Covid naqueles Mercedes grandes e amarelos da Carris. É que o distanciamento social fica mais difícil de cumprir para quem tem passe social.
Para uma segunda fase do processo fica a abertura de lojas maiores, e só a 1 de Junho os centros comerciais. Junho, aliás, promete ser o mês da grande explosão da curva epidemiológica: parece que já estou a ver a malta a passear de cachecol no Colombo, enquanto espera que comece o Aves-Benfica. É que não se pode entrar no estádio, mas pode entrar-se num café com SportTV, não pode? Já não somos o país dos três efes, este plano veio mostrar que somos pátria de dois efes apenas: tem de haver futebol senão está tudo f...
Também em meados de maio teremos as creches abertas. Há quem defenda que é o mais sensato a fazer, já que são raros os casos de crianças pequenas afetadas pelo coronavírus, e há quem defenda que é o mais sensato a fazer "porque já não aguento o raio do puto todo o dia a pedir danoninhos, enquanto espalha legos pelo corredor e enche o sofá de plasticina". Para outras núpcias ficaram os ginásios, bares e discotecas. Tempos difíceis para aquela malta que ocupa os dias a fazer supino e as noites em festas da espuma. O que vale é que parte deles, já prevendo isto, orientou a vida de forma a entrar na nova edição do "Big brother". Sempre estão entretidos...
Humorista