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Há algum tempo, conta o jornal "El País", o grupo armado "Estado Islâmico do Iraque e Levante", próximo da al-Qaeda e que combate no norte da Síria contra o regime de Bashar El-Assad, divulgou um vídeo na Internet. Não podia ser boa coisa, porque um vídeo na Síria não é de certeza para dar a conhecer ao Mundo uma festa de família. De facto, ali se mostra um dos "militantes" daquele grupo que, em Alepo, segura na mão e exibe a cabeça de um homem barbudo. O desgraçado foi decapitado por ser tido como um xiita iraquiano que lutava ao lado das forças governamentais. Sucede que, ó diabo, membros de um outro grupo rebelde (Ahrar al Sham) dado ao islamismo sunita viram aquelas imagens e reconheceram na cabeça decapitada um dos seus comandantes. Mohammed Fares Marush, assim se chamava, perdeu a cabeça por ter sido confundido com outrem.
Não fosse o episódio grotesco e sinistro, e até nos faria sorrir.
É, no entanto, revelador a vários títulos.
Com efeito, a não ser para coisas deste género, o conflito sírio quase desapareceu das notícias: logo, deixámos de lhe atribuir relevância. Essa ausência, naturalmente, não ocorre por simples acaso. Durante algumas semanas, entre finais de Agosto e durante Setembro, a Síria foi sempre protagonista pelas piores razões. Não porque se discutisse como estancar o conflito ou porque se quisesse, de alguma forma, que ali se aplicassem mínimos de decência. Mas, antes, porque se perguntava, como tópico único, se iria ou não haver uma intervenção militar estrangeira. É hoje cada vez mais claro como, a propósito de um ataque com armas químicas num subúrbio de Damasco, se tentou a todo o custo que os Estados Unidos (e outros Estados) entrassem no conflito e derrubassem o Governo de Damasco. A tempo, e também em virtude de uma ação diplomática concertada entre EUA e Rússia, a Síria assumiu o compromisso de destruir todo o seu stock de armas químicas. Isto permitiu que os norte-americanos não perdessem a face e, sobretudo, não servissem de idiota útil, ao serviço, entre outros, da al-Qaeda - que esperava, gulosamente, por tal intervenção.
Os últimos relatórios da Cruz Vermelha Internacional e da Human Rights Watch demonstram como a situação humanitária na Síria se degrada a cada dia que passa, e como as partes no conflito violam, grosseira e sistematicamente, todas as suas obrigações. Por seu turno, infelizmente, as Nações Unidas parecem enredadas num processo tíbio de "aproximação" das partes, como se isso fosse viável estando, de um lado, grupúsculos ligados à al-Qaeda.
O que se pode portanto dizer, quando o silêncio sobre o que se passa na Síria é cada vez mais pesado? Que, para variar, aceitamos de forma passiva a desumanidade mais abjeta: habituámo-nos a ela. E que, como no caso com que iniciei a crónica, até teremos "pena" do indivíduo que foi desta para melhor por engano. Mas, e isso é grave, já nem nos apercebemos do essencial. E o essencial é a decapitação sistemática de prisioneiros, não é o engano.
Luta sem quartel e sem regras? É lá longe, não nos incomodem com isso.
