Injusta, imoral, insultuosa, terrorista... Foi assim, nem mais nem menos, que se exprimiram algumas vozes indignadas contra a classificação de "lixo" atribuída à dívida soberana portuguesa por uma agência internacional de "rating" [agência de notação], na passada terça-feira. Aparentemente, os chamados "mercados financeiros" não se deixaram comover pelo corte de metade do subsídio de Natal dos portugueses. Não repararam que o Governo dispõe de uma sólida maioria e que até se apressara a demonstrar que pretendia ir mais longe do que aquilo que acordara com a Europa e o FMI. Nem sequer agradeceram a renúncia às "golden share" que o Estado detinha na EDP, na GALP e na PT. As "quotas douradas", convém não esquecer, tinham sido criadas com a finalidade de compensar os riscos para o interesse nacional inerentes à privatização de sectores estratégicos para a nossa economia como a electricidade, os combustíveis e as telecomunicações. Pergunta-se, naturalmente, como vai o Governo doravante acautelar o interesse nacional nessas áreas cruciais e que contrapartidas terão sido exigidas aos accionistas privados dessas três empresas, objectivamente "enriquecidos" pela eliminação das prerrogativas públicas que até agora os oneravam.
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Não se compreende, enfim, tanta indignação e alarmada surpresa perante o comportamento das deploradas agências nem que tão rapidamente se esqueça que, ainda há pouco, se condenava análogos desabafos como faltas de respeito pelos nossos "generosos" credores. De facto, o diagnóstico da "agência" coincide exactamente com o que dizem há muito tempo, ainda que por motivações diversas, o PCP e o Bloco de Esquerda: que o país vai ficar ainda mais pobre em resultado da aplicação destas medidas e que a dívida vai crescer em vez de diminuir. Aliás, nada é mais certo e consensual entre as instituições europeias e nacionais do que o prognóstico da recessão da economia portuguesa até 2013. Além de que a dívida externa cresceu efectivamente com os empréstimos mais recentes e, sobretudo, com os juros usurários que nos cobram, já próximos dos 20%, mas ainda longe dos 30% que estão a ser cobrados à Grécia! Não há nada mais transparente, racional e previsível do que o comportamento das agências de "rating" que logicamente procuram defender os seus interesses privados, em dólares americanos, se necessário, à custa do euro. Uma "agenda escondida" só para quem não a quer ver. O que não se entende é que só agora se comece a reparar na profunda imoralidade desta especulação usurária contra os povos da Europa e na complacência criminosa com que as instituições europeias se submetem à sua autoridade e se tornam cúmplices, pela sua indecisão e mesquinhez, de estratégias alheias.
Imaginou-se que um novo governo era a solução para todos os problemas. Irresponsavelmente, em vez de enfrentar os desafios óbvios e forçar uma ampla coligação de governo - que desde Novembro de 2009 se anunciava indispensável - preferiu-se montar o "circo" eleitoral que pouco mais clarificou do que a urgência da mudança. Quatro meses mais tarde, uma espécie de esquizofrenia apoderou-se do discurso político, com a inversão dos papéis: o Governo de turno assume as dores e esgrime as razões do anterior. Os argumentos da velha Oposição são recuperados e assumidos pela Oposição de serviço: - Onde estão as medidas do Governo para fazer crescer a economia? Afinal, é ou não possível pedir mais sacrifícios aos portugueses? Se não é admissível reduzir salários, cria-se um imposto extraordinário de 50% sobre o 13.º mês? Em que ficamos quanto ao equilíbrio do défice: corta-se na despesa pública ou acrescenta-se na receita fiscal? Estamos condenados a desejar o sucesso do Governo. Oxalá!
Quero lavrar por fim uma nota fúnebre: junto-me ao vasto coro de sentida consternação dos que não se conformam com a perda de Maria José Nogueira Pinto que tive a sorte de conhecer pessoalmente e cuja voz desassombrada tanta falta fará à nossa democracia e à credibilidade da instituição parlamentar. Maldito cancro!