O cliché da contagem assíncrona das percentagens de adesão à greve ou dos números de manifestantes em praça é uma tradição tão antiga que já dispensa apresentações. O jogo de faz-de-conta-que-não-aconteceu é agora mais misterioso pelas novas dinâmicas do teletrabalho, mas não deixa ser sonhadora esta versão pouco plausível de olhar para uma greve geral que não acontecia há 12 anos, numa convergência das duas históricas centrais sindicais, e ver apenas uma soma de pequenos nadas.
Mais absurdo, porém, é termos chegado a esta greve geral que luta pela rejeição de um pacote laboral que não constava sequer do caderno de encargos eleitoral de Luís Montenegro, sem que o Governo tenha cumprido os mínimos para o explicar ou fundamentar a sua necessidade. Há aqui um sentimento de impunidade, mesmo que inexistente, de quem entende que a mobilização dos trabalhadores já não surte qualquer efeito e que uma demagogia de pacotilha pode lavar mais cinza a greve mais vermelha. Podia ser um mundo a preto e branco aquele em que o ministro Leitão Amaro aconselha os portugueses a viver, sem ligar muito às notícias. Mas, como ontem se percebeu, a realidade existe e impõe-se.
Ontem, ergueu-se uma luta para não regressar ao passado. Se necessidade houvesse de avaliar o sucesso ou insucesso da greve geral, bastaria olhar para o calendário dos oportunistas: a extrema-direita de André Ventura, antes completamente contra, agora completamente a favor, quase a guinar a posição de apoio parlamentar depois de guinar a narrativa. Marques Mendes, candidato presidencial em campanha, a demonstrar o incómodo. A Iniciativa Liberal a cavar o fosso entre o sector público e o privado, como se uma greve geral não fosse assim mesmo, geral. Sai um banco de horas para os infelizes legisladores do pacote laboral.
É estranha a forma como um Governo minoritário, cercado pela agenda e demagogia do Chega, compra esta guerra com o país quando tudo o que tem feito é, inteligentemente, tratar da paz e respiração conjunta com os eleitores. Alguma inusitada soberba, esta, em contraciclo com a prática e táctica política de um Governo que procura sobreviver no tempo até conseguir atacar uma maioria pela redistribuição e táctica política. Nesse sentido, a alegoria da salvação aparece no round 2 da Concertação Social, à procura de uma redenção em que alguém recue ou, pelo menos, se explique.
O autor escreve segundo a antiga ortografia

