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Há tempestades perfeitas e há a situação em que vivemos, já muito para além disso. Esquecessemos nós o período conturbado politicamente, com a alegada maior democracia do Mundo a transformar-se numa oligarquia, e o desenvolvimento acelerado da inteligência artificial (IA) já seria motivo de preocupação. Privacidade, conteúdos falsos, manipulação e adormecimento das mentes de milhões de pessoas - não é um Velho do Restelo quem o diz, é mesmo a Microsoft, que até tem muito a ganhar nesta área.
No ambiente político atual, o problema agudiza-se, já que há supremacistas tecnológicos a tentar deixar a inovação em roda livre, sem pensar nas consequências, deixando-nos à mercê de uns quantos deuses tecnológicos. Entre esses supremacistas, estão, por exemplo, Elon Musk, o presidente de facto dos EUA, JD Vance, alegado vice-presidente dos EUA, eventual toupeira na Casa Branca do reacionário bilionário das tecnologias e amigo do dono da Tesla Peter Thiel, que considera que o grande risco da inteligência artificial é "não irmos a fundo o suficiente".
Na última semana, as cabeças pensantes da IA e da política mundial estiveram em Paris para um ponto da situação da tecnologia, e as notícias não são boas. Num espaço europeu pioneiro em criar regulamentação que não deixe a IA escapar ao controlo dos Estados, Von der Leyen anunciou 200 mil milhões de euros de investimento, mas o tom geral (e de Macron, em particular) mudou e resolveu-se salientar os aspetos positivos da tecnologia, pondo em causa a pouca regulação já em prática, com medo de se perder o comboio da inovação.
Mas de que serve a inovação se beneficiar sempre os mesmos? Do lado dos EUA, a mensagem foi clara: desregulação total e é bom que a UE faça o mesmo, porque as empresas americanas não gostam de regras. Este novo conceito geral para a área já foi assimilado, por exemplo, pela Google, que até já deixou cair a promessa de não usar inteligência artificial para sistemas de armamento ou vigilância. Resumindo: menos regulação, mais inovação a qualquer custo. Alguém depois que feche a porta.
Enquanto isso, continuam as tentativas de manipulação eleitoral com recurso a IA, agora na Alemanha, que vai a votos no próximo fim de semana. E não sabemos bem que impacto a desinformação gerada por IA teve em processos eleitorais como o norte-americano e que impacto vão ter no futuro, sob a capa de uma alegada liberdade de expressão que só parece interessar quando é para gerar ódio, confusão, divisão. E quem beneficia? Vocês sabem. Não precisam que diga. Apetece pegar no FMI José Mário Branco e dar-lhe um novo sentido: "desregula, filho, desregula, que a tecnologia é muito linda". E o resto mais vale ouvir no original, porque o vernáculo não cabe nestas páginas.