Desterritorialização e reinvenção dos lugares
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No último quarto de século o futuro deixou de estar inscrito na lógica das coisas, tornou-se instável e virtualmente líquido, uma metáfora para o estado da nossa condição humana onde tudo é volátil, efémero, precário, transitório, passageiro, instável, temporário, fluido, enfim, líquido. A passagem do conceito de ordem ou estrutura (sólido) para o conceito de rede ou conexão (líquida) dá bem conta dessa transição. E estas noções líquidas e fluidas e, agora, também, gasosas (as bolhas das redes sociais) são de aplicação em todas as áreas, desde as relações amorosas e familiares até às relações de poder nos campos da economia, da sociedade, da política e, obviamente, da revolução digital.
Estamos, também por isso, em plena mudança paradigmática no que diz respeito à ocupação do território. De um lado, o caos pós-moderno e a desterritorialização do espaço, a sobreocupação das grandes áreas metropolitanas e o abandono das chamadas zonas interiores e remotas, alimentados pela ideologia dominante do neoliberalismo global, mercantil e predador que está na génese das grandes desigualdades atuais entre continentes, países, sociedades e regiões. Do outro lado, o imperativo ético-político de uma 2ª modernidade e de uma economia dos bens comuns e dos bens públicos globais, tal como fica expresso, por exemplo, com grande clareza, nos 17 objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) da ONU. Um imperativo ético-político onde prevaleça o princípio geral da utilidade social do respeito por todos e cada um dos cidadãos e onde as prioridades da agenda territorial sejam o combate contra as alterações climáticas, a construção de uma nova matriz energética, a prevenção contra os incêndios florestais, a proteção da biodiversidade e dos serviços de ecossistema e, em consequência, a formação de um sistema agroalimentar de base territorial que materialize essas prioridades e, dessa forma, contribua para a sustentabilidade da ecologia da paisagem e uma antropologia espacial mais territorializada como fundamento de uma socio-economia da 2ª ruralidade.
A desterritorialização pós-estruturalista explica-se, desde logo, pela privatização do espaço e a prevalência do direito proprietário que retalharam o território a fim de o mercantilizar e extrair dele todas as mais-valias possíveis e imaginárias independentemente das suas limitações bioeconómicas e biopolíticas. Esta desterritorialização faz parte da analítica própria do modernismo. Foi a analítica modernista que consumou a divisão cidade-campo ao criar a noção de perímetro urbano
e, assim, múltiplas éticas e estéticas particulares para lá das fronteiras de cada domínio territorial particular.
Com efeito, a criação de perímetros, fronteiras, limites, barreiras, o desejo de fazer ganhos, benefícios e mais-valias de oportunidade à custa de alguma especulação, tudo isto faz parte da ideologia do mercantilismo e da financeirização de todos os recursos, agora convertidos em ativos, os quais precisam de ser valorizados e gerar mais-valias nas transações de mercado. Perante a grande aleatoriedade deste movimento de recursos transformados em ativos, a questão mais crítica reside em saber como se apresenta a ocupação do território no final deste duplo movimento, ou seja, quem pode garantir que a reterritorialização do espaço respeita a ecologia da paisagem - biodiversidade, ecossistemas e serviços de ecossistema - as condições mínimas de equidade e coesão territoriais e muitos direitos já adquiridos?
Quem viaje pelo interior do país e pelo rural remoto e prestar atenção à fisionomia do território apercebe-se com relativa facilidade deste duplo movimento, de desterritorialização e reterritorialização dos lugares, se quisermos, de uma dialética entre espaço de fluxos e espaço de lugares onde a reinvenção espacial acontece. Por isso mesmo, nós dizemos que a realidade se tornou um assunto interpretativo, num tempo de profundo desajustamento aspiracional, sobretudo por parte de uma parte importante da classe média que sente uma deceção profunda face às promessas e à esperança da política. Ao mesmo tempo, esta dinâmica do duplo movimento, esta reinvenção dos lugares, abre-nos o caminho para uma nova antropologia do espaço de lugares.
De um ponto de vista mais substantivo, esta antropologia do espaço de fluxos e lugares, esta reinvenção dos lugares, remete-nos para alguns vetores causais que são indutores de mudança. Desde logo a municipalização da cultura por via de um crescente investimento em equipamentos de cultura (musealização, centros interpretativos e espaços de arte e cultura). Depois a digitalização de muitos processos artísticos e culturais por via das artes e tecnologias digitais. Em terceiro lugar, a turistificação, a gamificação e o touring de muitos percursos ecológicos, recreativos e culturais. Em quarto lugar, o esverdeamento e a modernização ecológica e suas soluções inovadoras 4R (redução, reciclagem, reparação, reutilização). Finalmente, uma certa estetização da ecologia da paisagem e suas amenidades, isto é, um pastiche criativo que a convergência de todas estas tendências favorece e proporciona.
Dito isto, é possível alinhar os fatores que estão na base desta reinvenção dos lugares e, assim, compreender melhor o que nós designamos aqui como uma nova antropologia do espaço de fluxos e lugares no contexto de um duplo movimento de desterritorialização e reterritorialização.
Em primeiro lugar, a reinvenção dos lugares como resposta a uma emergência climática, ditada pela força das circunstâncias e face a uma iminente tragédia dos comuns.
Em segundo lugar, a reinvenção dos lugares como resposta a um novo conceito ou abordagem ao ordenamento do território e à ecologia da paisagem, por exemplo, uma área integrada de gestão paisagística ou um condomínio de aldeias.
Em terceiro lugar, a reinvenção dos lugares como resposta a uma nova abordagem e prioridade atribuída aos bens comuns, aos bens públicos, aos bens comunitários.
Em quarto lugar, a reinvenção dos lugares como resposta a uma nova relação cidade-campo, por exemplo, o redesenho de infraestruturas verdes e corredores ecológicos, o restauro de ecossistemas e habitats, a construção de parques agroecológicos municipais e intermunicipais como base para uma agricultura mais regenerativa.
Em quinto lugar, a reinvenção dos lugares como resposta aos espaços inertes dos anéis urbano, periurbano e suburbano de uma área metropolitana, por exemplo, em vários formatos urbanos de agricultura acompanhada pela comunidade (AAC).
Em sexto lugar, a reinvenção dos lugares como resposta aos novos ambientes tecno-digitais, por exemplo, no ecossistema de uma agricultura de precisão em formatos de agroturismo, gamificação e eventos de natureza desportiva, artística e cultural.
Em sétimo lugar, a reinvenção dos lugares como resposta ao culto sagrado da paisagem em áreas de paisagem protegida como os parques naturais, os geoparques, as zonas termais, os bioparques, as amenidades paisagísticas, os parques urbanos, etc.
Em oitavo lugar, a reinvenção dos lugares pode nascer de uma certa estetização da paisagem rural motivada pela turistificação de herdades, montes e quintas enquanto instrumentos de branding territorial que conduzam, por exemplo, à formação de marcas distintivas e à distinção do rural sob a forma de um terroir.
Em nono lugar, a reinvenção dos lugares pode nascer como resposta à sociedade da informação e do conhecimento no âmbito, por exemplo, de projetos de investigação e
desenvolvimento e de residências científicas, artísticas e culturais. A observação e estudo dos endemismos locais é um excelente exemplo.
Finalmente, a reinvenção dos lugares pode nascer como resposta a uma nova narrativa e storytelling territorial no âmbito intermunicipal ou regional com o objetivo de fazer subir a escala das infraestruturas e equipamentos, atingir novos públicos-alvo e, assim, consolidar a rede e a interoperabilidade dos pequenos roteiros, eventos municipais, peregrinações anuais, feiras e festivais de âmbito internacional, etc.
Estamos em 2024. Em todos os casos, a generalização dos dispositivos tecno-digitais possibilita uma dilatação de território, material e imaterial, e esta dilatação não deve ser objeto de privatização por que representa uma nova condição e cultura territorial, um novo ativo e um novo princípio de identidade que devem, por isso mesmo, ter um incumbente inovador capaz de fazer a administração dos novos bens públicos e comuns.
Dito de outro modo, a reinvenção dos lugares pode nascer numa plataforma colaborativa e ter à sua volta muitos atores locais e regionais como operadores e destinatários do stock e fluxo de informação, por exemplo, cooperativas, grupos empresariais, instituições de ensino superior, áreas de paisagem protegida, zonas de intervenção florestal, associações de desenvolvimento local, etc. Em todos estes casos, estamos a pôr à prova a força dos laços fracos destas comunidades e a testar a resistência de um direito comunitário inovador face à hegemonia do direito proprietário.
Nota Final
Esta associação entre dilatação do território e reterritorialização, entre espaço de fluxos e espaço de lugares, operada em primeira instância por uma comunidade online e em seguida transferida para uma comunidade offline, é uma experiência extraordinariamente enriquecedora no que diz respeito à ocupação do território e deve ser, por isso, objeto de muita atenção e estudo aturado, designadamente, a observação dos processos e procedimentos que consolidam a força dos laços fracos dos novos incumbentes, mas, também, os traços da dinâmica territorial que se estabelece entre espaços de fluxos e espaço de lugares e a dialética entre direito comunitário e direito proprietário, enfim, a caracterização de uma nova antropologia do espaço-território em formação.