Acordei cedo este sábado, pronta para refletir. Com um certo entusiasmo infantil até, talvez porque esta reflexão obrigatória e decretada por lei me faz lembrar as palavras da minha professora primária: "Joana, vai para aquele canto refletir sobre o que fizeste".
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E cá estou eu, tantos anos depois, no meu canto, obrigada a pensar sobre este cantinho à beira-mar plantado. Sempre me irritou esta designação de Portugal, como se fossemos um canteiro mal-amanhado. Pior, só a Madeira, que é um jardim. Ando há uns dias a preparar-me para esta reflexão. Ontem até me deitei mais cedo e fiz uma refeição tipo ciclista, com muitos hidratos, para hoje poder pensar acerca do carbono. Sinto-me preparada para esta missão. É urgente refletir. Mas como é que se faz? Não sou especialista nisto. Nunca pensei demoradamente em nada (como certamente já notaram). Já sei. Vou ao Google. Procuro por "lugares ideais para refletir". A pesquisa devolve-me destinos longínquos: Machu Picchu, no Peru, ou Monte Kailash, no Tibete. Não tenho tempo de ir e voltar a tempo de votar. Ainda para mais com os célebres atrasos da TAP... demasiado arriscado. O mais certo era chegar à Escola Secundária onde exerço o meu direito cívico às 19.05 horas, cinco minutos depois de ter terminado a oportunidade de exercer direitos cívicos... Resigno-me com as condições precárias que tenho para refletir, mas mantenho a confiança, como aqueles nossos atletas olímpicos que treinam à chuva e mesmo assim conseguem medalhas... Dirijo-me ao sofá da sala e instalo-me. Rapidamente percebo que alguma coisa não está bem. Instalei-me em posição de ver Netflix, e não de refletir. Não há de ser assim espojada que chego a alguma conclusão. Experimentei a pose de lótus mas essa é mais recomendada para quem pretende atingir o nirvana, não tanto para pensar no futuro da nação. À falta de melhor, adotei a postura d"O Pensador, de Rodin. Para ter ficado imortalizada em estátua como posição ideal para pensar, eles lá hão de saber... Se nunca experimentaram, não o façam, aviso-vos, já que é pouco ergonómica para quem é de carne e osso e não de bronze.
Resolvo então deitar-me no chão. Uma posição boa para quando se tem dores nas costas é capaz de funcionar quando temos uma responsabilidade destas às costas: decidir quem é que deve decidir os destinos do país! Tentei ser literal naquela história de "ver as coisas doutra perspetiva". E de facto consegui. Vi uma mancha de humidade no teto da sala que nunca antes detetara. Tenho de ligar ao Sr. Paulo para cá vir tratar daquilo, urgentemente. Agora que reparei não consigo pensar noutra coisa. Mas hoje é sábado, o homem não trabalha. Está a descansar, que também merece. Ou será que também tirou o dia para refletir? Em que posição o fará? Podia perguntar-lhe isso também... Ah, e pedir-lhe para mudar o candeeiro da entrada, que está partido. E para me pendurar aqueles quadros que estão no chão desde que nos mudámos para esta casa. Será que fizemos bem? Trocar uma moradia por um apartamento foi sensato? Perde-se em jardim, ganha-se em segurança... É melhor ter mais espaço aqui, numa rua sem comércio, ou ter menos espaço lá, num bairro que tinha tudo? Fará sequer sentido viver na cidade? Não devia ter ido para o campo? Não era melhor para o meu filho? Ar puro e tal? E fico só por um filho ou tenho mais? Ser filho único é assim tão mau? E se o irmão ou irmã (ou aquela formulação com x no fim que agora se usa, tipo irmx) for muito pior que ele? Se não dormir, não comer, não acatar ordens? Será que devemos dar ordens às crianças ou estamos a repetir os erros dos nossos pais? Será que devia ser mais compreensiva? Ou mais rígida? Será que ele vai ser bom aluno? Ou vai ser preciso andar atrás dele para fazer os trabalhos de casa? Fazem sentido ainda os TPC? Ou deviam ser erradicados?
O meu filho acordou. Acabou-se o período de reflexão. Inicia-se agora um período de vigência do Canal Panda, Legos e sumo de laranja. Terei de decidir em quem votar em cima da hora. Como decidi tudo até hoje. Nem tem corrido mal. Pelo menos o miúdo porta-se bem, não é como o selvagem do futuro irmão. Merda! Acaba de entornar sumo de laranja nos estofos do sofá. Novo. Nunca devia ter mudado de sofá com uma criança de dois anos cá em casa. Foi uma decisão irrefletida.
Humorista