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Num tempo em que se espera que reajamos de imediato a tudo o que acontece, acho que o dia de reflexão é o dia depois e não a véspera das eleições. É nesse hiato que me encontro. Acreditando que, por muito que me frustrem os resultados, tenho de separar o povo daqueles que o instrumentalizam, fazendo dos segundos o alvo da minha crítica e contínua resistência.
Vivemos tempos difíceis, a vida é muito dura para a grande maioria dos portugueses e não podemos esquecer que o privilégio nos tolhe, demasiadas vezes, o discernimento. Tendemos a alimentar o viés, consumindo o que o algoritmo nos oferece e buscando nos pares a concordância que nos alimenta as lutas e nos reafirma as convicções. É humano, mas não deixa de ser uma forma de comodismo.
A erosão do Estado social tem as suas consequências na vida das pessoas e alimenta o desamparo e o ressentimento. Num tempo em que a mobilidade social é impossível (mesmo pelo estudo) e em que ficou claro que as próximas gerações não viverão melhor que as anteriores, está desfeito o mito da prosperidade que o capitalismo nos prometeu. Mas quem paga a fatura é a Esquerda, que não sendo a causa do problema, não soube priorizar a resposta a esse desamparo (perdendo tempo a tentar moderar um sistema intrinsecamente assimétrico e canibal).
Quando o desamparado (desprovido de todo o orgulho próprio, de toda a esperança de futuro e de toda a consciência histórica e coletiva) precisa de sentir que há, num patamar abaixo, alguém ainda mais desgraçado, alguém em quem se pode cuspir, alguém que até o oprimido pode oprimir, o populismo vence, montado no cavalo do ressentimento e apontando a espada aos mais fracos (normalmente as mulheres, as minorias, os imigrantes). Sendo que a Esquerda, além da incapacidade de resposta, assume a defesa do bode expiatório, afastando-se ainda mais da possibilidade de “resolver” tamanha carência de legitimação e irritando ferozmente a grande massa de ressentidos.
Enquanto isso, os grandes interesses económicos, que se agigantam numa sociedade cada vez mais desigual, riem de escárnio com a debacle dos partidos de Esquerda (os únicos que clamam por redistribuição de riqueza) e alimentam liberais e populistas com chorudos financiamentos. Os primeiros para cumprirem o objetivo prioritário de desmantelar o Estado social de vez, privatizando todos os serviços públicos (com o argumento da liberdade de escolha, que só funciona para os ricos e que põe o Estado a sustentar os privados). Os segundos, para alimentar a lógica “dividir para reinar”, pondo pobres contra minorias, enquanto o saque acontece.
Agora que têm dois terços do Parlamento, o caminho está aberto para a mudança constitucional que consagra o desmantelamento. Enquanto isso, os média, que reproduzem o discurso dos primeiros (como o diapasão da sensatez) e dão todo o tempo de antena aos segundos (como num freak show), fingem a surpresa toda.