Pergunto-me como se faz para recomeçar um ano, cheio de energia e esperança tirando partido do verão e do sol quando em vez de verão temos inverno.Aqui pelo Norte chove, dia sim, dia não e mesmo quando faz sol, venta e faz frio! Arrepia e faz tremer e temer dificuldades difusas, como o nevoeiro, do qual só se sai seguindo o som sinistro da "ronca" (nome pelo qual é conhecido em terras da Póvoa, Caxinas ou Vila do Conde o sinal sonoro que traz os barcos até terra em noites de nevoeiro).
Corpo do artigo
Como vamos nós viver mais um ano sem os verões de Sophia? Se ao menos vivêssemos os dias de luta que precederam o dia inicial inteiro e limpo......
Estamos, pelo contrário, condenados e resignados a lutar contra moinhos de vento que não vemos, sem ao menos contarmos com o fiel dorso Rocinante.
E o pior é que se vão esfumando as referências. Este ano tem sido particularmente difícil. Ficamos sem o olhar arguto de Medeiros Ferreira, o classicismo eterno de Graça Moura, a geometria fundadora de Nadir Afonso, os edifícios luminosos de Alcino Soutinho, o coração portista de Hernâni Gonçalves ou Sardoeira Pinto.
No cinema foram-se "o olhar" e o "clube dos poetas mortos".
No Brasil morreu Eduardo Campos, líder de uma oposição séria a um PT sem condições de governar e há muito desgovernado. Será por esta linha torta que Marina se tornará candidata à Presidência? Estranha vida, esta.
E ontem (escrevo na quinta) morreu Emídio Rangel.
Nunca o conheci (fui professora da filha Ana) mas sempre me impressionou o consenso permanente sobre a condição de "visionário" que lhe atribuíam. E foi-o. Sobretudo, para mim, no extraordinário percurso que rasgou para libertar a rádio do Estado e da Igreja e respetivas hierarquias. Criou uma cooperativa, desafiou os órgãos de soberania com uma emissão pirata larguissimamente anunciada mas, mais importante, foi capaz de demonstrar que na realidade existia um amplo consenso político e popular sobre a necessidade de abrir a rádio a outras experiências mais livres e diversas. Lutou sete anos consecutivos até conseguir abrir a TSF (rádio) e até hoje lhe agradecemos a persistência, que nos trouxe um dos mais importantes instrumentos de liberdade.
Levou idêntico fulgor reformista para a televisão. A SIC não foi só a primeira cadeia privada de televisão. Foi sobretudo um modo radicalmente diferente de fazer televisão. Todos nos deixamos seduzir. E durante muito tempo liderou e justificou o entusiasmo e a hiperatividade que se lhe descortinava na rapidez do discurso e na velocidade do raciocínio.
A certa altura percebi que se afastou (ou foi afastado) e pareceu-me um homem mais triste. Parecia-me "emprateleirado". Nada de muito estranho na nossa república onde tantos, depois de lutar pela criação, montagem e financiamento de projetos válidos e de consequências duradouras, são rapidamente defenestrados para que possa cortar a fita quem, com isso, mais dividendos políticos possa tirar.
Mas, neste caso, pareceu-me sempre que Emídio Rangel se afastava com a dupla tristeza de quem pode ter ateado um incêndio que a ninguém convencia a apagar. Um estranho caso do criador que se vê morrer às mãos da criatura.
E, para mim, foi mesmo assim. A televisão, com o povo lá dentro e o povo a ver de fora, deteriorou ao limite todos os parâmetros de qualidade informativa e de entretenimento. A SIC e a sua novíssima experiência tiveram tal impacto que todos os canais hoje existentes se atolam numa infernal cartelização da agenda (telenovela contra telenovela, concurso contra concurso, alinhamento de notícias contra o mesmo alinhamento de notícias) o que a todos radicalmente empobreceu.
Rangel deve ter percebido isto quando não quis o "Big brother" na SIC. Era a altura de avançar por outro lado. A ganância óbvia de quem achava que a nova via era uma eterna "cash cow" expulsou-o do sistema. Hoje podiam, ao menos, reconhecer o erro.
Claro que, para isso, era preciso que vivêssemos num mundo genuíno com valores definidos e aceites com coragem.
Não. Nestes dias de inverno convivemos bem com um Nobel da Paz que anuncia uma longa guerra, de roupa desportiva a caminho de Martha"s Vinnyard.