Digitalização, automação e artificialização. O risco de desinstitucionalização das humanidades
Na sequência dos meus dois artigos sobre os efeitos da disrupção tecno-digital (JN, 22 e 23 de maio 2025) trago, agora, à reflexão dos leitores um pequeno texto sobre o risco de desinstitucionalização das humanidades induzido pelos processos de digitalização, automação e artificialização.
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Os processos de virtualização em curso nas áreas da informação, conhecimento, comunicação e cultura que estão, agora, a ser operados pela digitalização, automação e artificialização (IA) transportam-nos para um ambiente operativo muito mais diferenciado onde se assiste à desconstrução dos anteriores protocolos de relação socioinstitucional. Falamos de processos de desmaterialização, desintermediação, desinstitucionalização, desvinculação, desinformação, desigualdade, desconfiança, desemprego e despolitização. Este processo de desconstrução é especialmente visível nos chamados aparelhos ideológicos de estado ou, mais simplesmente, nos grandes serviços públicos que asseguram as várias fases da linha sequencial de formulação e implementação de uma política pública. Por razões de espaço vou apenas referir-me ao risco de desinstitucionalização das humanidades – educação, ciência e cultura – uma desvinculação induzida pela disrupção tecno-digital e capturada pelos mercados, as redes e plataformas. Senão, vejamos.
1. Em primeiro lugar, cresce o outsourcing da política pública em tudo o que se refere a estudos prévios e fundamentação técnica; este découpling da política pública em relação ao próprio aparelho técnico-administrativo é um risco alto em tempo de virtualização extensiva e intensiva;
2. Em segundo lugar, cresce o out-funding da política pública em linha com a governança europeia multinível e os novos instrumentos dos mercados financeiros e, portanto, também, as exigências de escrutínio europeu e internacional cada vez mais alinhado com a formatação e os padrões da sociedade algorítmica;
3. Em terceiro lugar, cresce o determinismo e o solucionismo tecno-digitais para tudo o que diga respeito a mercados, redes e plataformas por oposição às vetustas e convencionais instituições e burocracias do estado-jurídico-administrativo tradicional onde as determinações técnico-jurídicas ainda são dominantes;
4. Em quarto lugar, cresce o capitalismo semiótico e a intensidade do agir comunicacional, ou seja, sobe o número de agentes que privatizam o espaço público de informação, comunicação e cultura apoiados e financiados pelo capitalismo tecno-digital, por exemplo, as fundações, academias, think tanks, clubes, consultoras, agências, que disputam a enunciação da verdade em contraponto com as instituições convencionais, por exemplo, as universidades, os jornais e as agências do Estado-administração;
5. Em quinto lugar, cresce a desvinculação corporativa e sindical da força de trabalho, ou seja, cresce a precarização e a intermitência dos trabalhadores e suas condições de recrutamento em linha com a desmaterialização da própria relação laboral, agora, sob a designação de colaboração e/ou prestação de serviço no quadro de regimes laborais mais flexíveis e adaptáveis;
6. Em sexto lugar, cresce a confusão cognitiva da cadeia de valor das humanidades, da educação, ciência e cultura, em busca de um novo modus operandi dos processos educativos, científicos e culturais no que diz respeito ao uso intensivo e interativo dos dispositivos que hoje inundam o universo tecno-digital;
7. Em sétimo lugar, cresce a desesperança acerca do futuro, capturado por um presente omnipresente e vertiginoso, mas sem uma linha de rumo que dê um sentido e direção à ação política individual e coletiva; as humanidades correm o risco de se converter num sistema de benchmarking, em que as metas, os indicadores e as métricas transformam os utilizadores numa espécie de veículos autónomos de uma internet dos objetos.
No contexto acabado de enunciar, o risco de desinstitucionalização e desintermediação da educação, ciência e cultura significa que o código informático e o protocolo algorítmico prevalecem e impõem aos agentes e incumbentes principais de uma política pública uma espécie de bullying tecno-digital que não leva em devida conta nem as condições pré-existentes nem as promessas de futuro, em nome, dizemos nós, de uma intencionalidade própria do capitalismo tecno-digital.
Aqui chegados, a dúvida sistemática está de volta. Vivemos entre a globalização (a aldeia global) e a individualização (a sociedade do mercado) e em risco permanente de colisão. A política doméstica perdeu fronteira e soberania territorial e foi capturada pelo capitalismo neoliberal e tecno-digital enquanto os mercados, as redes e plataformas tomam conta das instituições de intermediação e mediação - políticas, sociais, culturais e cívicas - que eram, até agora, as guardiãs das memórias do nosso passado e das promessas do nosso futuro, assim como o espaço público do agir comunicacional democrático. É, justamente, o espaço público do agir comunicacional democrático que o populismo nacionalista tenta capturar fazendo apelo direto à soberania do povo e do estado nacional, usando e abusando de uma ideologia antissistema suportada em violência simbólica e comunicacional que se obtém pelo desvio da atenção para situações recorrentes, muitas delas falsas, de urgência e emergência. Por isso, o risco moral elevado dos processos de desinstitucionalização e desintermediação, e tanto mais quanto as instituições da democracia representativa, associativa e cívica são, neste contexto, lugares de resistência, pensamento crítico e ação coletiva democrática onde se experimenta a interação que se pretende entre o dispositivo tecno-digital e a intencionalidade sociopolítica e sociocultural, bem como o real significado da conversão entre comunidades virtuais e comunidades reais. O grande desafio para as humanidades, na sua tripla dimensão de educação, ciência e cultura, é o de esclarecer rapidamente este risco moral e desmistificar a ideologia dos vieses cognitivos que é veiculada pela economia comportamental dos desvios de atenção trazida até nós pela erupção da sociedade tecno-digital e o populismo nacionalista. A dúvida sistemática está de volta e um sujeito enviesado nunca fará as escolhas certas.