Digitalização, inteligência artificial e governança multiníveis (I)
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Uma das piores consequências que podemos observar no funcionamento do espaço público democrático é a confusão entre os fins e os meios. Entre a equidade e a justiça que a inteligência humana (IH) reconhece e propõe e a eficiência e eficácia que a digitalização e a inteligência artificial (IA) nos oferecem por via, por exemplo, do automatismo do protocolo algorítmico. Ou, dito de outro modo, o compromisso que é possível estabelecer entre a exclusão por via dos meios e a inclusão por via dos fins.
O espaço público democrático é um espaço de liberdade, interação, criatividade e conhecimento onde todos os grupos sociais têm a oportunidade de expressar livremente as suas principais necessidades e aspirações que são, em primeira instância, satisfeitas pela provisão de bens públicos e bens comuns. Ora, este espaço público democrático está a passar por uma profunda transição paradigmática, desde logo devido à revolução tecno-digital, que podemos observar e seguir em três grandes áreas da nossa vida coletiva: a digitalização de serviços públicos e a sua transferência parcial para operadores privados de comunicação (1), um sistema de vigilância e controlo dos comportamentos humanos através de redes e sistemas de informação e comunicação em que os sensores e os algoritmos nos transformam em código informático (2), o crescimento da cibersegurança e das guerras híbridas no espaço cibernético (3).
A extraordinária velocidade desta transformação paradigmática está a colocar-nos, mais uma vez, perante o drama dos limites e a tragédia dos comuns, um verdadeiro futuro distópico cada vez mais inquietante. Na verdade, os setores mais frágeis, aqueles sem uma lógica de ação coletiva que os proteja e defenda, serão os mais afetados por esta confusão deliberada, de raiz tecnocrática e plutocrática, entre os meios e os fins. Refiro-me aos grupos sociais mais vulneráveis da população, mas, também, aos bens públicos e comuns do património e da paisagem, da ciência e, em especial, das ciências humanas e sociais, da arte e da cultura, da ética do cuidado e dos direitos humanos que a salvaguarda e defende.
Aqui chegados, importa perceber por que razão não podemos perder o espaço público democrático e o debate contraditório, participativo e inclusivo que nele se desenrola através, por exemplo, das boas práticas de governança multiníveis entre diferentes escalas de governo e administração. E é assim, por que as três grandes áreas que referimos, por via da complexidade e intensidade das suas hiperligações, estão a acelerar o processo de instrumentalização e inversão entre inteligência artificial (os meios) e inteligência humana (os fins). Este processo de instrumentalização e inversão entre os fins e os meios acarreta riscos consideráveis. Senão vejamos.
A digitalização de serviços públicos e a sua transferência para plataformas e operadores privados (1) está em curso a um ritmo cada vez mais acelerado. A prazo, estão em risco os funcionários do processo e procedimento da rotina burocrático-administrativa do Estado-administração convencional (veja-se o ataque do departamento DOGE dirigido por Elon Musk contra vários setores da administração americana). Estão em risco não apenas as funções soberanas do Estado-nação, mas, também, a provisão de bens públicos e comuns do Estado de bem-estar e, sobretudo, a apropriação privada dos dados dos cidadãos e a subestimação de muitos valores e princípios que associamos ao bem comum da ética republicana.
Um sistema de vigilância e controlo dos comportamentos humanos através de redes de comunicação e sistemas de informação (2), uma espécie de panótico do capitalismo de vigilância e da sociedade algorítmica, que utiliza marcadores e créditos sociais para personalizar, pressionar e eliminar os erros humanos, uma sociedade onde os drones e sensores se transformam em censores da guarda pretoriana de regimes populistas e autoritários. Estão em risco os princípios mais elementares do regime democrático, dos direitos humanos e da privacidade dos cidadãos.
O crescimento da cibersegurança e o aumento das guerras híbridas no espaço cibernético (3) acompanha a mudança geopolítica em curso e é, quase sempre, uma violação flagrante do espaço público democrático. Estamos a falar de utilização de forças não-estatais, de guerras de informação e propaganda, de ataques cibernéticos dirigidos a infraestruturas críticas, de ameaças continuadas de sabotagem, manipulação de processos eleitorais, desinformação, eliminação de opositores, promovidas por grupos de hackers, mercenários, milícias e insurgentes etc. Estão em risco, mais uma vez, as razões e os princípios do Estado democrático. E os exemplos não faltam.
Ora, no ciberespaço, estas três grandes áreas do paradigma tecno-digital comunicam e convergem constantemente entre si através da utilização intensiva de protocolos e procedimentos algorítmicos cada vez mais sofisticados. Estes algoritmos usam a IA para identificar padrões de comportamento que são suspeitos de atividades maliciosas e através de aprendizagem automática reagem e respondem automaticamente a essas ameaças. Pelo caminho, no entanto, a hegemonia do algoritmo e do código digital no espaço público faz, de imediato, uma vítima, a governança multiníveis (GMN). De
facto, ao reprogramar automaticamente o espaço público com reação e resposta imediata e, assim, esvaziar o debate contraditório, a IA do protocolo algorítmico deixa a GMN com pouca margem de liberdade para administrar o seu sistema próprio de pesos e contrapesos que assenta mais no fator político-institucional do que no fator tecno-digital, em obediência ao princípio geral de subsidiariedade e à concertação multiníveis.
A GMN apresenta, como sabemos, várias escalas de governo e administração: supranacional, nacional, regional, sub-regional e transfronteiriço, municipal e intermunicipal, e no fim desta escala, como utente, destinatário e beneficiário, o cidadão em nome individual e suas organizações representativas. Estamos a falar, sobretudo, de níveis político-institucionais e administrativos de escala fixa, mas que, em qualquer momento, podem formar redes e plataformas colaborativas de geometria variável para, justamente, tirar partido da grande capilaridade oferecida pelas redes de comunicação e sistemas de informação. De resto, vai ser muito interessante observar como, em matéria de GMN, o sistema político-institucional, na sua tripla aceção – o quadro jurídico-institucional (a polity), a operacionalização de políticas públicas (a policy), a concertação social e política (a politics) – irá interagir com o sistema tecno-digital virtual e online, mais desmaterializado e desinstitucionalizado, menos burocrático e aparentemente menos oneroso, numa interação e recomposição permanentes em que ambos ainda buscam o melhor equilíbrio para abordar e maximizar a GMN. Creio, mesmo, que, no final, teremos uma GMN a várias velocidades: uma GMN mais conservadora e centralista colada às instituições da democracia representativa e do Estado-administração mais convencional, uma GMN mais descentralizada e autonomista como parte de uma democracia avançada de natureza participativa e colaborativa e, por fim, uma GMN parcialmente privatizada pela transferência de atribuições e competências para os novos incumbentes, as várias plataformas colaborativas de parcerias público-privadas e consórcios privados.
Seja como for, a digitalização e a IA da sociedade algorítmica vão continuar a crescer, apoiadas pelos vários modelos de linguagem, vão introduzir-se na GMN, seja no processo de tomada de decisão como nos processos de implementação de políticas públicas, vão formalizar, codificar e normalizar cada vez mais beneficiários e destinatários e, por essa via, discriminar e excluir, cada vez mais, esses mesmos destinatários e beneficiários e, quase sem darmos por isso, vão reprogramar as nossas mentes e decidir por nós. Isto é, uma verdadeira caixa negra de processo e procedimento que, mesmo aberta, nem sempre vamos compreender. E será tanto mais assim quanto mais disruptiva for a conjuntura geopolítica e geoeconómica que se apresenta, como é aquela
que temos atualmente, a exigir meios que são escassos para aplicações alternativas, como é agora o caso da política de segurança e defesa. Talvez a melhor opção política seja mesmo, e desde já, descer a montante e preparar o cidadão utente e destinatário dos incentivos europeus e nacionais para uma intensa digitalização e artificialização eletromagnética que aí vem a coberto dos ambientes virtuais, das máquinas inteligentes e dos modelos de linguagem da inteligência artificial.
Assim, e numa sociedade cada vez mais envelhecida, talvez devamos começar por manter um equilíbrio bem proporcionado entre atendimento presencial e não presencial, assegurar a capacitação digital mínima aos mais vulneráveis, garantir a acessibilidade às plataformas digitais para diferentes níveis de literacia, introduzir e ajustar a cobertura digital dos territórios, reforçar a segurança cibernética e a educação dos cidadãos em matéria de fraudes e privacidade online, criar pontos focais nos territórios (juntas de freguesia?) em apoio dos grupos de população mais vulneráveis.
Nota Final
O mundo está de tal modo interconectado que corremos o risco de sufocar com o tsunami informativo e comunicacional e, sobretudo, com o formalismo excessivo da sociedade algorítmica que, por via dos seus automatismos, não tardará a reprogramar as nossas mentes e transformar-nos em código informático. Por isso, a importância fundamental de defender a todo o custo a liberdade do espaço público democrático, o seu espírito contraditório no quadro de uma teoria crítica do agir comunicacional que preserve e desenvolva a capacidade argumentativa de todos os atores em redor da sua lógica especifica de ação coletiva. No final, vamos ter, provavelmente, uma GMN híbrida a três velocidades: uma GMN convencional em redor das instituições burocráticas da democracia representativa e do lobbyin tradicional, uma GMN submetida ao protocolo digital e algorítmico de uma caixa negra de inteligência artificial e, por fim, uma GMN de plataformas e parcerias colaborativas público-privadas que será, provavelmente, aquela que irá prevalecer.