Pensar que o racismo acabou quando se aboliu a escravidão, ou pensar que com a abolição se sanaram, de um só gesto, os problemas dos povos negros, é mais do que ingenuidade, é uma leviana demissão.
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Crescemos muito pouco informados acerca de como Portugal se relacionava com as ex-colónias. Há uma saudade generalizada nos retornados, uma visão até plástica que remete para os lugares solarengos e frugais, muitas praias e muitos empregados. Pouco se discute como, até ao fim da ocupação, se podia impedir a grande multidão negra de sequer entrar nas ruas brancas, criando documentos que legalizavam a presença de apenas alguns, mormente para fins de criadagem (é ver a história de Maputo, basta perguntar pelo importante bairro negro da Mafalala).
O sistema foi sempre racista. Não houve, ao longo dos séculos, qualquer interesse em dotar os povos negros de meios no que respeitaria à saúde, à educação, habitação ou outra coisa qualquer. A verdade é que, quanto mais não seja por ignorância, seguimos a exigir dos povos negros um silêncio profundo e uma complexa gratidão, como se o facto de poderem passear no Rossio fosse a gloriosa gentileza que tudo sana, tudo compõe. Uma tolerância que queremos seja já alimento e cumprimento de todos os sonhos.
Os casos mediáticos, absolutamente distintos, envolvendo pessoas negras, são sintomáticos de como o país ainda vê África. É difícil, senão até impossível, discutir o racismo sem evocar casos concretos e os casos concretos levantam uma emoção imediata, parecem solicitar a escolha de um lado. O certo é que, imerso no círculo branco, me cansa ouvir essa piedadezinha dos que acham que os caminhos estão abertos, a vida é difícil para todos e, por isso, não devem nada aos negros. Os negros que se esforcem como compete a todos.
A simples ilusão de que as pessoas negras enfrentam as mesmas dificuldades que enfrentam as brancas já é racismo. Do mesmo modo que já é machismo achar-se que as mulheres estão em absoluto pé de igualdade com os homens.
As assimetrias ainda são flagrantes e mais se notam quando as pessoas negras são notícia. Também porque não é comum noticiar a maravilha que fazem. É fundamental encontrar uma maior representatividade negra, como feminina, em todas as formas de poder. E é fundamental que nos lembremos que não atribuímos direitos a ninguém. Os direitos pertencem por natureza a cada um. Podemos todos guardar a piedadezinha. Isto é mesmo sobre a igualdade.
* ESCRITOR