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A propósito da revolta da rua árabe, falámos de emendas piores do que os sonetos. Importa hoje ver a outra face: a do imperativo moral da violência. Em 514 antes de Cristo, Hiparco, co-senhor de Atenas, foi assassinado por um grupo de notáveis, comandado por Armódio e Aristogítones. Há uma grande discussão sobre os reais motivos do golpe de Estado: inveja, sede de poder, conflitos sentimentais e económicos, "contradições" entre segmentos governantes, divergências doutrinais? Certo é que a morte entrou na história como o primeiro caso de tiranicídio.
Hiparco pode ter sido esclarecido mecenas, governante representativo e ponderado, mas na lenda aparece como um ditador morto por "causa justa".
Pode haver momentos em que o grupo homicida age em nome próprio, afirmando fazê-lo ao serviço de superiores interesses. Lembremos que, ao derrubar a "monarquia corrupta" do rei Idriss, em 1 de Setembro de 1969, o grupo de oficiais "nasseristas" de Kadafi (quase todos já desaparecidos, ou subalternizados) afirmava encarnar a "vontade do povo" e a "determinação da nação".
O problema é precisamente este. E se o tirano for morto por falsas causas, ou por uma clique que pretende apenas instalar outro déspota, qualquer que seja a sua forma?
Na morte de Júlio César, os conspiradores terão gritado "sic semper tyrannus" ("assim sempre aos tiranos"). Com o cadáver do imperador nos braços, Marco António (pelo menos na potente caricatura de Shakespeare) terá sugerido que os verdadeiros monstros seriam os assassinos, vestidos de cidadãos honrados. E não nos esqueçamos que o mesmo brado contra a tirania foi lançado pelo assassino de Abraham Lincoln. Lincoln, o inspirador de Obama. Lincoln, o libertador - por mão militar e guerra civil interposta - dos negros americanos.
Mas sabemos, de uma longa lista de pensadores e actores desde a Idade Média, dentro e fora da Igreja, de S. Tomás a João de Salisbúria, dos Monarcómacos a Milton, que há casos de tirania demonstrada, sedimentada, aumentada, em relação à qual a revolta pelas armas é o menor mal.
Se o crime continuado está no trono, o crime da rua pode ser desculpado, ou atenuado, ou exculpado. Sobretudo se (e é um "se" vital) o revoltoso tiver o máximo pudor, e a maior preocupação, e extremo cuidado, em não repetir os métodos daquele que se derruba.