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Há dois dias, adquiri no aeroporto de Madrid um livro de memórias de Jorge Dezcallar, um credenciado diplomata espanhol. Ao lê-lo, pude recordar como é diferente a cultura política que se instalou no nosso país, no tocante à gestão da carreira diplomática. No nosso vizinho peninsular, as mudanças drásticas de governo têm muitas vezes consequências dramáticas nas escolhas de chefias internas e na titularidade das representações diplomáticas, num registo que induz fortes tensões e a perspetiva de repetição simétrica no futuro.
Graças a Mário Soares, no pós-25 de Abril, a estrutura essencial da nossa máquina diplomática foi preservada, com o novo poder político a ter rápida consciência de que teria ao seu dispor, em geral, um corpo qualificado de funcionários, devotado a servir lealmente o Estado e os interesses nele projetados por quem, a partir daí com total legitimidade, o passava a dirigir. Houve exceções, claro, mas essas baixezas morais acabaram por se autoqualificar, na memória deontológica das Necessidades.
Portugal vive hoje tempos de uma diplomacia democrática: os governos mudam, os embaixadores não mudam necessariamente com eles. A rotação destes processa-se, em regra, nos ritmos normais, sem sujeição necessária aos ciclos políticos.
Mas, para sermos francos, há que dizer que os riscos não desapareceram, por completo. Uma cultura democrática demora muito tempo a impor-se. Vemos que ainda ressurge, a espaços, a tentação, nos fins de ciclo, de colocar à pressa alguns peões, por parte dos executivos que estão de saída. Este, aliás, não é um pecadilho com particular coloração ideológica, persistindo em todos os partidos que passam pelo poder.
Suscito este tema, motivado pelas tais memórias, que têm por título "O antiquário de Teerão", porque me parece importante que esta questão, tal como recentemente o foi a defesa do exercício exclusivo de cargos de chefia diplomática pelos profissionais que fizeram uma carreira especializada para tal, venha a ser assumida como axial na ação das estruturas sindicais que representam o pessoal diplomático.
Por isso, porque a independência política da diplomacia é um bem a garantir no nosso serviço público, é imperioso preservar a carreira diplomática profissional da instrumentalização política. Um diplomata não é um eunuco político, pode e deve ter uma ideologia. Mas deve interiorizar que o seu único dever de obediência é perante o interesse do Estado, de que o governo de turno é apenas um ocupante episódico. Convém que se lembre sempre disso e que o recorde aos governos com os quais se cruzar.
* EMBAIXADOR