Na última semana tivemos duas notícias do Reino Unido, de sentido contrário. A primeira dava conta da grande derrota da extrema-direita inglesa nas eleições locais, a qual quase desapareceu do mapa político inglês. A segunda foi a aprovação, pelos conservadores, de uma nova lei da ordem pública que, entre outras coisas, reforça os poderes de intervenção da Polícia na contenção de movimentos de protesto, chegando ao ponto de autorizar a penalização de manifestantes mesmo antes de estes se manifestarem. Apenas com base numa avaliação do potencial distúrbio da ordem pública que venham a provocar.
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Como no Relatório Minoritário de Philip K. Dick, adaptado para cinema por Spielberg, a Polícia passa a poder privar alguém da liberdade antes mesmo de qualquer ato considerado ilegal. E para que o novo poder policial tenha efetividade, a lei alarga a definição de ameaças e perturbações à ordem pública, embora com o emprego de formulações suficientemente vagas para permitirem grande discricionariedade policial. Surpreendente, para dizer o mínimo, num país tantas vezes saudado pelo seu papel pioneiro na história da democracia e do Estado de direito.
A primeira aplicação da lei aconteceu na cerimónia de coroação do rei e concretizou-se na prisão do líder e de alguns militantes do movimento Republic, bem como na apreensão de materiais de protesto, nomeadamente os cartazes com as palavras de ordem "not my king". A manifestação cumpria todas as formalidades exigidas pelas autoridades policiais, os pormenores da sua realização tinham sido acordados entre Polícia e manifestantes, mas, no momento certo, o protesto foi reprimido apenas por ser considerado potencialmente perigoso. O número dois do Governo conservador, perante a afirmação do cartaz, "not my king", recomendou aos manifestantes antimonárquicos que emigrassem, mudassem de país.
Num certo sentido, os acontecimentos da coroação quase anularam a primeira noticia. Na prática, representaram a adoção, pela Direita tradicional, de uma orientação política típica da extrema-direita.
Este não é um fenómeno exclusivamente britânico. Infelizmente, a contaminação da agenda de partidos moderados por temas da extrema-direita está a acontecer em muitos outros países da Europa.
Sobretudo à Direita, mas também no centro-esquerda. Muitas vezes com o argumento de assim se travar o caminho à extrema-direita, faz-se avançar a sua agenda. Estranha forma de garantir que esta ganha mesmo quando perde.
*Professora universitária