Na crónica da semana passada referi-me a uma das piores violações de direitos humanos, ou seja, a da violência doméstica na sua tríplice dimensão: violência sobre mulheres, violência sobre crianças e violência sobre idosos. Hoje irei abordar uma outra forma de violência que é a que existe dentro das prisões. Quer a violência dentro das casas de família, quer a que se exerce no interior dos estabelecimentos prisionais, têm similitudes que as tornam igualmente repugnantes. Em ambos os casos existe uma relação de dependência das vítimas em relação aos agressores, em ambos os casos o silêncio (das vítimas e de quem não deveria calar-se) funciona como o principal aliado dos violadores. São demasiado altos os muros das nossas prisões, não só para impedir a fuga dos reclusos mas, sobretudo, para evitar que a sociedade olhe para o seu interior.
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As prisões portuguesas são um terreno fértil para violações dos direitos fundamentais porque nelas os regulamentos e os despachos dos funcionários dos serviços prisionais prevalecem sobre as leis da República, incluindo a Constituição da República Portuguesa. É um território onde os poderes que o gerem, geralmente, não são (ou são muito raramente) limitados por outros poderes e onde a reação de qualquer recluso (por mais legítima que seja) contra qualquer violência é sempre silenciada com a invocação da sua "dívida para com a sociedade", ou seja, com recordação do crime que cometera, quando não com formas mais intensas de violência.
Há muito que defendo a jurisdicionalização integral do processo de execução das penas, ou seja, que o processo de cumprimento de uma pena seja dirigido por um juiz de Direito diferente daquele que proferiu a condenação. Isso teria como consequência que o recluso fosse previamente ouvido sobre todas as questões ou decisões relacionadas com a sua situação e que pudesse recorrer das que considerasse ilegais ou injustas. O advogado, por seu turno, não deveria dar como terminada a sua intervenção processual quando transita em julgado a sentença condenatória, mas sim acompanhar a sua execução como acontece com as restantes ações executivas. O apoio judiciário deveria estender-se ao processo de execução das penas de prisão, como garantia de que os princípios do Direito prevaleceriam sobre o poder e a força bruta.
Infelizmente, esse desiderato parece cada vez mais longínquo. O atual poder político, com destaque para o Ministério da Justiça, não está interessado em criar condições para a modernização dos estabelecimentos prisionais, sobretudo para uma maior transparência no seu funcionamento.
Não está interessado em diminuir os poderes dos diretores das prisões, que diretamente nomeia e controla, em favor de magistrados independentes a quem não pode dar ordens. O atual Governo, que iniciou funções prometendo acabar com uma justiça para ricos e outra para pobres, encheu as prisões de pessoas pobres. Praticamente todos os estabelecimentos prisionais estão sobrelotados e, consequentemente, há mais violência, mais despesas e menos ressocialização.
Portugal é um dos países da Europa com menos crimes e com uma criminalidade menos violenta mas tem uma das maiores (senão a maior) taxas de reclusão. A relação entre o número de presos e o número de habitantes é, na Europa, de cerca de 80 reclusos por 100 mil habitantes, mas em Portugal já ultrapassou os 120 reclusos. A situação é particularmente escandalosa na ilha de São Miguel, nos Açores, onde a taxa de reclusão é mais de três vezes superior à média nacional. Com uma população de 137 mil habitantes, São Miguel tem 530 reclusos, ou seja, 387 cidadãos presos por 100 mil habitantes. É uma autêntica barbaridade só superada pelos Estados Unidos, Rússia, Bielorrússia e Geórgia. Além disso, muitos reclusos dos Açores cumprem, na realidade, duas penas: uma de prisão e outra de degredo pois mais de metade deles foram transferidos para o continente (240) ou para a Ilha da Madeira (60).
Numa altura em que o Papa Francisco, num gesto simbólico de humildade, lavou os pés a reclusos, os sinais que o Governo português emite em matéria penitenciária são de arrogância, de obscurantismo e do mais primário populismo.