O confinamento a que nos obrigou a covid-19 fez brotar em muitos/as um desejo de mudança das suas vivências e de acreditar que, depois da pandemia, tudo seria diferente. O Mundo não voltaria a ser um ringue de lutas desiguais, no qual o mais forte e poderoso desfazia o mais fraco e desprotegido.
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Arrumaram-se as ideias e aconteceu a saudade. Dos convívios, dos amigos, da família, das conversas sobre tudo e sobre nada. Saudade de tempos distantes, pois os mais recentes eram de luta pela sobrevivência, na vã ganância de adquirir dinheiro e poder, fosse à custa do que fosse, até da dignidade e da honra. O isolamento forçado levou a maior parte das pessoas a pensar num futuro diferente. Depois, a vida iria mudar, para melhor, mais fraterna e solidária, acreditavam os optimistas. Infelizmente, não parece ter-se concretizado aquela luz de esperança. A insatisfação, a raiva, a depressão, a ira contida irromperam como lava de um vulcão em erupção, e parte das populações e dirigentes mundiais entraram em delírios de mais poder, mais ganância, matando-se uns aos outros, gritando blasfémias, insultos e aleivosias entre pares, adversários, instituições, enfim a comunidade no seu todo. Nada está bem feito, nada é positivo, tudo é criticado até ao absurdo e inusitado. É nesta cacofonia que se lembram do Direito Penal. Este só deve ser convocado em último caso, quando o acto ou actuação viola direitos fundamentais dos cidadãos e não é possível com razoabilidade dirimir o conflito. Certas tomadas de posição públicas expondo ideias muito próprias, contrárias às da maioria da comunidade, foram objecto de críticas, apelando à aplicação do crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência previsto no CP. Este normativo consagra o impositivo constitucional da igualdade de todos os cidadãos, independentemente do credo político, religioso, origem étnica... Comete este ilícito quem fundar, constituir ou participar em organização ou desenvolver actividade de propaganda organizada que incite à discriminação, ódio ou violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua identidade. É ainda punido quem, publicamente, nomeadamente através da apologia ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade, provocar e incentivar actos de violência contra aquela pessoa ou grupos de pessoas. Elementos do crime são a organização, desenvolvimento de actividades de propaganda organizada ou incitamento à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua identidade. Daqui resulta que a mera tomada de posição pública de alguém ou de grupo, sem provocar o ódio e a violência contra aquelas pessoas expressa ou liminarmente, é uma mera opinião ainda que criticável, mas não assume a categoria de ilícito criminal. Em democracia a opinião é livre e livremente discutida, desde que responsável e não lese os princípios e normativos constitucionais.
a autora escreve segundo a antiga ortografia
Ex-diretora do dciap