Discriminação passada não justifica discriminação presente
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O nosso instinto diz-nos que se deve ter em conta o que alguém sofreu no passado na forma como avaliamos o seu comportamento presente. Não deveria então o árbitro da final do US Open de Ténis ter sido mais tolerante com Serena Williams, atendendo ao facto de esta ter sido frequentemente vítima de discriminação no passado?
Recordemos os factos. Serena Williams foi advertida por ter (violando as regras) recebido instruções do seu treinador (facto que veio a ser confirmado pelo treinador). Mais tarde, frustrada com o seu jogo, destruiu a raquete, o que implica, automaticamente, outra advertência. Na sequência desta segunda advertência, Williams deixou definitivamente de ser Serena ...: insultou repetidamente o árbitro, chamando-lhe ladrão e mentiroso, e ameaçou mesmo que ele não voltaria a arbitrar no seu "court". Terceira violação e a consequente perda do seu jogo de serviço. Não é novo ver atletas sobre pressão reagir mal: recordo a agressão de Zidane na final do mundial contra a Itália ou o soco de João Pinto no árbitro no jogo decisivo contra a Coreia. Mas Serena Williams veio argumentar que as decisões do árbitro eram resultado de uma cultura de discriminação e racismo contra as mulheres no ténis. De uma discussão sobre desporto passámos a uma discussão sobre discriminação.
Sucede que nada demonstra que este árbitro trate de forma diferente tenistas homens. E não seria sempre mais relevante ele tratar de forma igual as duas mulheres em confronto no jogo? Há quem argumente, no entanto, que o árbitro devia ter atendido a todas as discriminações de que Serena foi vítima ao longo da sua vida e carreira. Ainda recentemente foi objeto de comentários discriminatórios a propósito da sua indumentária no Open francês. Acredito que esse passado tenho contribuído para a reação de Serena. Talvez naquele momento acreditasse mesmo que estava a ser vítima de discriminação novamente (como aqueles jogadores que convictamente negam um penálti que todo vemos...). O problema é que a sua opositora nada tem a ver com isso. O que Serena pretendia era usar em seu favor, num jogo contra outra atleta, a história de discriminação contra ela e outras mulheres. Podemos reconhecer essa discriminação passada e até compreender, a essa luz, o seu comportamento, mas não podemos permitir que isso se torne uma razão para discriminar contra outra pessoa.
Há aqui uma lição mais ampla: discriminação passada não pode ser compensada discriminando contra outros no presente. Isto não implica ignorar que um passado de discriminação pode também revelar uma cultura ainda presente de discriminação. Serena Williams poderia contribuir para combater a segunda se provocasse uma discussão sobre as regras aplicadas a todas as mulheres. Mas o que pretendia era bem diferente: era jogar com regras diferentes das aplicadas à sua opositora...
*PROFESSOR UNIVERSITÁRIO
