Corpo do artigo
O problema do discurso de ódio é que as suas consequências chegam com latência, de forma difusa, pelas mãos indiretas dos legitimados, mas quem o profere dificilmente é tratado e punido como coautor moral do crime. Passa nos pingos da chuva da liberdade de expressão, não parece incitamento direto à violência (por não ser proferido diante de uma turba incendiada), mas quase sempre legitima os que estão dispostos a exercê-la. E é nos momentos em que atinge, de facto, na carne dos mais desprotegidos, que devemos ver a montante quem cuspiu a centelha de ódio, para que a culpa (ainda que política) não morra no celibato.
No caso dos racistas que espalharam o terror no Bonfim, espancando imigrantes dentro da sua própria casa, não precisamos de efabular grandes teorias da conspiração para chegar àqueles que, discurso após discurso, amplamente amplificado pelas televisões, têm associado imigração e criminalidade, e particularmente os muçulmanos a um perigo para a nossa sociedade. Não é preciso grande faro sociológico para perceber que este tipo de discurso proferido e normalizado no debate público e representado nas instituições políticas do país legitima a ação daqueles que se acham justiceiros patrióticos, quando, na verdade, são neonazis violentos e perigosos.
Cinquenta deputados, corroborando ideias preconceituosas no Parlamento, agasalham as costas aos que, na rua, querem exercer pela força a sua agenda racista. É claro o crescimento dos crimes de motivação racista, desde que temos a extrema-direita como uma das forças políticas com maior tempo de antena nos média tradicionais e a controlar a propaganda e a desinformação nas redes sociais.
É o pior de dois mundos. Por um lado, André Ventura com índices de tempo televisivo mais altos do que o primeiro- -ministro, numa omnipresença desproporcional ao seu peso político (mesmo que este não seja de somenos), numa irónica profecia autorrealizável e, por outro, hordas de apoiantes da extrema-direita na internet a desdenhar do que eles apelidam de “jornalixo”, criando as suas próprias verdades como factos, para cultivar a insegurança, culpar os bodes expiatórios mais vulneráveis e descredibilizar outras fontes. O resultado está aqui.