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Já se sabe que uma boa parte dos adeptos de futebol padece de clubite aguda. Uma paixão tal pelo clube por que torcem que a racionalidade e a objetividade ficam fora de jogo. Um penálti óbvio pode na verdade não ser penálti nenhum, um toque que não chega a acontecer pode ser uma falta indiscutível, o clube do coração é sempre prejudicado, o árbitro, claro, só lá está para complicar a vida (e esta é a versão mais polida da clubite). Há até diversos estudos que documentam e explicam estes mecanismos, em que as emoções e a devoção a um certo emblema acabam por falar mais alto. O que me incomoda, nos últimos tempos, é ver esta lógica irracional da clubite ser cada vez mais aplicada à discussão sobre o que está a acontecer na Faixa de Gaza. É ver quem, em nome de uma fidelidade litúrgica a Israel, seja incapaz de reconhecer o sofrimento do povo palestiniano e a legitimidade de aspirar a um Estado próprio. Ou quem ache que apontar o dedo aos terroristas do Hamas seja uma traição imperdoável à causa palestiniana. E assim, perante notícias e fotografias dilacerantes que retratam a fome inominável que perpassa Gaza, não falta quem impute todas as culpas ao Hamas e responda apenas: "Libertem os reféns." Como se o hediondo ataque de 7 de outubro de 2023 e a indesculpável tortura infligida aos reféns israelitas legitimassem o genocídio em curso e o sofrimento atroz que tem sido imposto ao povo palestiniano. Perante a divulgação de um vídeo de um refém, por parte da brigada Al Qassam (braço armado do Hamas), em que um jovem israelita de 24 anos, visivelmente magro e abatido, surge a lamentar o facto de não ter o que comer e de o tempo se estar a esgotar, há quem contra-argumente que, diariamente, dezenas de crianças perdem a vida na faixa de Gaza. Como se o massacre levado a cabo por Benjamin Netanyahu legitimasse o prolongamento do sofrimento de cidadãos israelitas sem culpas no cartório, e ainda assim retidos e torturados há quase dois anos. Assim segue a discussão sobre uma das maiores chacinas do nosso tempo - extremada, polarizada, mortes discutidas como se fossem penáltis duvidosos, atrocidades criticadas ou ignoradas em função do lado por que se torce, como se tudo se resolvesse com recurso ao VAR e meia dúzia de cartões. E não, a solução não é simples. Mas enquanto continuarmos perdidos neste duelo de gritos, a achar que a solidariedade só tem uma via e que os mortos se choram em função da nacionalidade, continuaremos a ser cúmplices deste círculo vicioso de dor e sofrimento. A clubite aplicada a Gaza não é só idiotice, é desumanidade pura.