Esta semana partiu outro dos meus amigos de quatro patas. Chamei-lhe Macca, em homenagem a McCartney. Erro crasso, ele não se parecia com o mais extrovertido dos quatro de Liverpool, era cioso da sua independência e pouco dado a grandes manifestações de afecto.
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O meu narcisismo não aceitou bem o facto, habituado que estava à alegria competitiva dos outros à minha chegada. Macca era gentil, mas mantinha distância, após uma lambidela carinhosa, retirava-se para os seus aposentos. Se lhe fizesse visita sedutora, fazia as honras ao mimo gastronómico, mas não me seguia os passos em sinal de gratidão. À noite, no corredor de Cantelães, dormia sempre num sofá de dois lugares. Eu a seu lado, contemplando a lua sobre a Cabreira, e ele impávido. Mas quando demandava o quarto, a sua cauda batia duas vezes, Macca desejava-me as boas noites. À sua maneira, cantam os Xutos.
Ao longo da pandemia, a questão da distância ideal para os membros dos casais foi omnipresente, sobretudo em períodos de confinamento. A proximidade desejada por um gerava a claustrofobia do outro, aferrado a uma distância sentida pelo primeiro como sinal de desleixo. E porque não encontrarem-se a meio caminho? No toque e nas palavras!, o diálogo reivindicado por um assume foros de tagarelice inútil para o outro. Assisti a sorrisos pacificados e a outros resignados, a recomeços e despedidas, houve de tudo, como na botica.
Outras distâncias. Rituais de corte e ecrã que se aprofundaram, rumo a um café em amena cavaqueira. Alguns desses encontros estão a acontecer. Mas há quem espere e desespere, foi usado(a) para preencher o exílio entre quatro paredes.
Ia escrever sobre a esperança tímida que nos invade, as máscaras e a distância que impõem ao sorriso, mas na TV ouço um jovem imigrante, trabalhador agrícola. No máximo recebe 800 euros. 130 vão para alguém, à laia de renda, vivam na casa dois ou vinte. 100 para o supermercado. 400 para a família distante; di-lo com um sorriso terno. Restam 170 para ele. Pagou 10 000 para vir...
Foi preciso a pandemia para descobrirmos esta realidade? À distância de um simples olhar de quem de direito? Apetece torcer o verso do Sérgio e decretar "a escravatura aqui tão perto". Perto estão os líderes da União Europeia, aqui, no Porto que ele cantava. Charles Michel, incansável paladino da igualdade de género, anunciou o propósito de "combater a pobreza e a exclusão social". Entre outros objectivos louváveis e com data-limite - 2030.
Vou esperar sentado em Cantelães. A almofada de Macca ficará vaga. Na minha idade, vive-se numa zona crepuscular que recusa a distância da morte, a saudade reúne os fantasmas e os de carne e osso.
Seremos dois a espreitar a Lua.
*Psiquiatra
o autor escreve segundo a antiga ortografia